Quando Paulo Francis entrou na redação do Fantástico, para uma “visita de cortesia”, produziu em torno si uma onda de silêncio que misturava curiosidade e reverência. O homem era uma estrela. Mas, “humildemente”, veio agradecer o destaque o programa tinha dado, na véspera, à entrevista que fiz com ele.
Ok : desde já, quero confessar ao distinto júri que sei do risco que corro ao usar a expressão “humildemente” num parágrafo que trata de Paulo Francis. As duas entidades, graças a Deus, eram incompatíveis: Francis e a humildade. Uma não se misturava com a outra. Eram como água e óleo. A referência a um lampejo de humildade em Francis deve produzir frouxos de riso em quem teve o privilégio de conhecê-lo. Mas, em nome da verdade factual, devo dizer que, sim, ao visitar a redação do Fantástico Francis teve um gesto de humildade. Ou seria gentileza ? Cravo nas duas alternativas. A imagem pública de “lobo hidrófobo” não combinava com o Paulo Francis no trato pessoal: um gentleman.
Paulo Francis tinha acabado de lançar um excelente livro memorialístico sobre o golpe de 1964, “Trinta Anos Esta Noite”. Eu tinha gravado uma longa entrevista com ele numa praça escondida nas proximidades do Jardim Botânico. Procurávamos um lugar razoavelmente silencioso para a gravação. O sucesso da busca foi parcial: crianças brincavam nas redondezas. As babás ficaram indiferentes à presença de Francis, mas pelo menos trataram de vigiar os passos de fedelhos que brincavam na praça.
Três anos depois, um ataque cardíaco fulminante matou o mais polêmico,o mais lido e o mais provocativo jornalista brasileiro, na manhã do dia quatro de fevereiro de 1997, em Nova York. Dizer que “Paulo Francis faz falta” virou um enorme lugar-comum. Mas é uma verdade puríssima: o texto de Francis faz uma falta imensa ao jornalismo brasileiro. Uma vez, ele escreveu: “Nossa imprensa: previsível, empolada, chata: como é chata, meu Deus...”. Em cem por cento dos casos, o que Francis escrevia escapava da chatice generalizada. Francis vivia reclamando de que era preciso criar no Brasil uma tradição: a de uma “prosa clara e instruída”. É o que há em outras culturas: a tradição de uma prosa clara e instruída, uma atividade que, no Brasil, tinha poucos cultores. Aqui, pensam que escrever difícil é escrever bem. Ledíssimo engano.
A contribuição que Paulo Francis deu para a criação de uma prosa jornalística “clara e instruída” ainda não foi devidamente avaliada. Onde é que estão os acadêmicos – que não tratam de demonstrar “cientificamente” esta herança ? É uma tarefa facílima. Ninguém precisava concordar com uma vírgula do que ele dizia. O importante é como ele dizia.
Livros como “O Afeto Que se Encerra” e “Trinta Anos Esta Noite” deveriam ser leitura obrigatória nas escolas de jornalismo – pela clareza cristalina, pela fluência absoluta, pelo ritmo agradabilíssimo do texto. É o que vale.
O nome de Francis voltou às páginas neste ano da graça de 2008 com o lançamento de um romance inédito que ele deixou, “Carne Viva”. É um presente para os fãs do auto-declarado “lobo hidrófobo” ( Uma vez, perguntei a ele como é que ele – que, quando criança, alegadamente exibia um ar de cão hidrófobo – se definiria na maturidade. Francis respondeu: “Que tal lobo hidrófobo” ? )
Publicado pelo selo Francis da Editora Landscape, este bem-vindo sinal de vida de Paulo Francis acaba de chegar às boas casas do ramo. Resenhistas já notaram que, quando personagens do romance abrem a boca para falar do estado geral das coisas, parece que é o próprio Francis quem fala. A “confusão” poderia parecer um defeito do romance. Mas eu diria que é uma virtude. Ainda bem que é possível ler de novo o que parece ser a voz de Francis. Há trechos do livro que – felizmente – parecem tirados da coluna fantástica que Francis publicou durante anos e anos na imprensa.
Trechos de “Carne Viva” :
“Em que mundo vive essa gente ? Numa fantasia de fraternidade, que se fosse levada a sério voltaríamos todos à lavoura, ao arado, à carroça de bois. Cobiça é o que faz o mundo girar. Quando a cobiça é saciada, e nunca o é completamente, pessoas como Sua Exa. E your obedient servant investem em empregos, filantropia e arte”
“Tinha ido a algumas noites de autógrafos de personalidades que Temístocles queria agradar,como políticos, autores de memórias, e ficava na fila conversando e, discretamente, namorando, se valesse a pena. Perguntou a um diplomata e escritor, Gilberto Amado, se um livro, pelo qual estavam esperando o jamegão do autor, iria vender. Ele sorriu e disse que “venderia o que vender aqui”, uns quase duzentos exemplares. O resto seria dado”.
“Chega de falar mal do Brasil. Não há países, nações. Há ambientes, pessoas, a maneira que nos conduzimos com nossos amigos, parentes e relações. Se formos uma pessoa de bem, e só o bem é radical, como escreveu Hannah Arendt, não há por que não levar uma vida boa, enquanto tivermos saúde e não deixarmos que nossa vontade seja violada ou espatifada”.
17 de julho de 2008
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