7 de junho de 2007

NOSSA SENHORA DO PERPÉTUO ESPANTO, ROGAI POR NÓS

1
Ah, o indizível tédio. Quando um desses Profetas do Apocalipse previam o fim da imprensa escrita, eu vos confesso que reagia com o meu melhor sorriso de desdém.

2
Que é assim: uma ligeira contração na interseção esquerda do lábio superior com o inferior. Mas minha descrença nas profecias sobre o fim do jornal impresso foi atropelada pelos fatos. Passei a conviver com uma dúvida inconfessável: quem sabe se os Profetas do Apocalipse não teriam razão?

3
Com o tempo , a dúvida se propagou, como um incêndio fora de controle, por minhas florestas interiores. Hoje, procuro com uma lanterna na mão um Guardião do Cálice Sagrado que possa, enfim, responder: se noventa e cinco por cento das notícias da primeira página já foram divulgadas na véspera pela TV e pela Internet, que papel caberá aos jornais, no futuro?

4
A geração habituada a trafegar na Infovia de Papel, como o locutor que vos fala, uma pré-múmia cinquentenária, consome jornais por hábito, mas os novos infornautas já não concedem tanta importância a esta superfície lisa e retangular que reinou, soberana, por décadas : a página de jornal. As telas dos computadores são a fonte que lhes mata a sede de informação.

5
Se tivesse a chance, eu perguntaria ao Guardião do Santo Graal : os jornais não estariam cavando a própria sepultura, ao repetir, acomodados, o que a gente já sabe desde a véspera ?

6
Por que será que há anos e anos todos dizem que os jornais devem investir pesadamente em grandes reportagens, em opinião qualificada, em "contextualização" dos fatos, mas ninguém põe em prática estas recomendações? É como se todos concordassem com o diagnóstico de um paciente, mas ninguém fizesse nada, nada, nada para lhe dar o remédio salvador.

7
Quanto a noviços autores dos livros: se o número de frequentadores de um blog bem visitado é invariavelmente superior ao de possíveis leitores de um livro, um autor novo certamente perguntará a seus botões : quem disse que vale a pena enfrentar a peneira das editoras, as edições mirradas, a distribuição difícil, a venda pingada, tudo em nome da fugaz glória de ver o nome impresso na capa de um livro exposto na quarta prateleira à esquerda de quem entra na livraria?

A tiragem média de um livro no Brasil é de três mil exemplares. Direitos autorais :dez por cento sobre o preço de capa. Distribuição: irregular. Repercussão : baixa. Ou nula.

8
Já se disse que o papel fica, a Internet se esvai. Mas quem disse que os arquivos digitais também não terão vida longa? Quem disse que os grandes arquivos da Internet não serão acessados daqui a cem anos? ( quem faz a pergunta que destroça um dos últimos argumentos a favor do papel - a capacidade de permanência - é o companheiro de Sopa de Tamanco, Toni Marques).

9
Kurt Vonnegut dizia que era devoto de Nossa Senhora do Perpétuo Espanto. A
revolução da Internet espalha espantos. Destrói certezas. Deixa no ar todas estas interrogações.
Um dia, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto nos responderá.

A ela, haveremos de acender velas imaginárias a cada vez que a lista de perguntas-sem-respostas e dúvidas-sem-saída incomodar nossas frágeis certezas.

10
Palpiteiro amador, arrisco dizer que o livro-objeto não desaparecerá. É a maior invenção da humanidade.


( Em segundo lugar na lista das invenções, distante, vem a Coca-Cola. Em terceiro, os melhores parágrafos de "O Leopardo","A Montanha Mágica", "Quarup" e "A Pedra do Reino". Em quarto,o chocolate Diamante Negro. Em quinto, o disco Abbey Road. Em sexto, a visão de Veneza à noite, no inverno. Em sétimo, os olhos de Charlotte Rampling, nos anos setenta. Em oitavo, o poema "A Máquina do Mundo" (Carlos Drummond de Andrade). Em nono, o riso discreto de Scarlet Johansenn. Em décimo, a Internet, com chances reais de subir para o primeiro).

11
Como eu ia dizendo antes de ser interrompido por esta lista urgente, o livro há de resistir aos cataclismos internéticos, mas os jornais, tal como existem hoje, vão nadar, nadar, nadar, mas não chegarão à praia.

12
Ou mudam de rumo ou naufragam, quem sabe, ao som de uma orquestra, como o Titanic. Um dia, os arqueólogos do futuro mergulharão nos baús para mostrar ao mundo que aquele punhado de folhas amareladas já foi chamado de jornal.