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"Acordo para a morte.
Barbeio-me,visto-me, calço-me.
É meu último dia: um
dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
(...)Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.
Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.
A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram os que vão morrer e não sabem.
Jornais,café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
(...) Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há muitos anos
antes e depois de hoje
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, síncopes, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cada vez maiores de ar.
(...) Sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio
(....) golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia"
(Carlos Drummond de Andrade, "Morte no Avião" - trecho)