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Para não dizer que o Sopa de Tamanco não falou de flores: um crítico escreveu que o documentário "Santiago" era uma obra-prima. Não exagerou. É verdade.
"Santiago" prova de novo que o espetáculo encenado todo dia por personagens anônimos pode ser mais rico, mais fascinante, mais comovente e mais surpreendente do que o mais inspirado dos filmes de ficção. É aquilo que - banalmente - se chama de "vida real".
Que roteirista poderia imaginar um personagem tão extraordinário quanto Santiago, o mordomo de uma família rica que passou a vida inteira copiando em folhas de papel a história da aristocracia mundial ?
Ao todo, preencheu trinta mil páginas. Já velho, aposentado das funções de mordomo, dispensava a companhia de quem quer que seja. Vivia aparentemente sozinho, mas contava com a companhia imaginária daqueles personagens aristocráticos descritos nas trinta mil páginas.
Aos olhos de qualquer "idiota da objetividade", a coleção de textos transcritos pareceria apenas uma montanha de folhas de papel ofício empoeiradas. Mas, para Santiago, os personagens descritos naquelas trinta mil páginas ganhavam vida, dialogavam com ele. Uma vez por semana, ele conversava com aqueles duques, príncipes obscuros, lordes esquecidos, reis destronados. Era como se todos estivessem ali, no pequeno apartamento, ao alcance de um aperto de mão do mordomo que enxergava num casarão da Gávea um palácio de Florença.
Santiago soube construir, para si, o melhor dos mundos: o da memória. Aquele que Norberto Bobbio via assim:
".....o mundo maravilhoso da memória, fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que vivemos, sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho, atraíram nossa atenção.Maravilhoso, este mundo, pela quantidade e variedade inimaginável e incalculável de coisas que traz dentro de si : imagens de vultos há muito desaparecidos, lugares visitados em anos distantes e jamais revistos(...)"
O personagem Santiago dá um passo adiante de Norberto Bobbio. Conseguiu corrigir e recriar o conceito de memória: passou a vida revisitando lugares e revendo personagens que jamais tinha visitado e visto antes.
É esta a chave da grande fascinação despertada pelo personagem : Santiago cometeu a façanha de aprisionar o tempo num sólido castelo feito de trintas mil folhas de papel. Depois, mudou-se para dentro do castelo. A obra de uma vida estava completa.
O documentário "Santiago" - que passou anos para ser finalizado - só poderia ser realizado por quem foi: João Moreira Salles. Santiago, o mordomo, tinha trabalhado durante três décadas na mansão da família Moreira Salles, desde o final dos anos cinquenta.
O filme é uma conspiração de acertos : a direção perfeita, a fotografia (Walter Carvalho) belíssima, a narração (Fernando Moreira Salles) excelente, tudo funciona a favor.
A mansão - que Santiago imaginava um palácio florentino - virou sede do Instituto Moreira Salles. Treze anos depois de morto, graças a um grande filme, Santiago acaba de entrar, com todas as honras e pompas, na restritíssima aristocracia dos personagens inesquecíveis.