Que falta faz o mestre Joel Silveira.
Faz um ano e um mês que ele morreu. Guardo como se fosse um tesouro a herança de nossa convivência: eu era o discípulo tentando aprender com o mestre.
Uma das falhas da personalidade de um repórter é agir como repórter até diante de amigos. Que coisa! Confesso: é o que fiz com Joel Silveira. Éramos amigos. Mas, ali, eu era, também, um repórter diante de um personagem. Não poderia voltar para casa de mãos vazias. Não voltei. Ao longo desses anos todos, gravei conversas que tive com ele, na sala do apartamento de um sexto andar da rua Francisco Sá, em Copacabana.
Modéstia à parte, a causa era nobre: eu não queria que as coisas que ouvia de Joel ficassem somente comigo. Era preciso repartir, espalhar,compartilhar aqueles ensinamentos, críticas, boutades, lembranças e confissões de um grande repórter que, com todo merecimento, ocupa uma vaga no esfarrapado Panteão do Jornalismo Brasileiro. Joel foi um dos grandes pioneiros no uso de técnicas literárias em textos jornalísticos.
Preservo, com todo cuidado, a pequena coleção de fitas. Pergunto: que outra coisa de útil pode fazer um repórter, além de sair coletando da maneira mais cuidadosa possível as lembranças alheias, para dividí-las com os leitores ? Nada. A essência do jornalismo é esta.
Sem pretensões descabidas, sem megalomanias risíveis, sem exibicionismo vulgar: o repórter pode, sim, ser útil ao funcionar como o pequeno guardião de histórias e memórias que - de outra maneira - estariam inevitavelmente condenadas a desaparecer na poeira da estrada, destino inescapável de tudo e de todos. Em seus melhores momentos, o repórter atua como se fosse um bombeiro ingênuo: tenta fazer com que a Grande Fogueira do Esquecimento não devore tudo. É uma batalha inglória, mas, como nas piores e mais piegas histórias edificantes, ele descobrirá que, feitas as contas, o esforço "vale a pena", sim. A alternativa é terrível: cruzar os braços e não fazer nada. Chamuscado, ele sairá do prédio em chamas com alguma coisa nas mãos: quem sabe, uma velha fita cassete, um bloco de anotações. A função do repórter é, portanto, a de oferecer ao distinto leitor uma coleção de "salvados do incêndio".
(Assim, não me arrependo nem um pouco de ter importunado Carlos Drummond de Andrade em agosto de 1987 sem imaginar que ele vivia uma dor indizível: a filha, Maria Julieta, estava à beira da morte, na cama de um hospital. Drummond cedeu à minha insistência. Deu-me uma longa entrevista. Dias depois, a filha morreu. Em duas semanas, o próprio Drummond estava morto. A entrevista terminou virando uma espécie de testamento do maior poeta brasileiro. Importunei o poeta, sim, mas cometi uma "boa ação": produzi um documento sobre ele. Ah, o belo desafio de transformar lembranças em matéria "palpável": as palavras impressas....As declarações que arranquei do poeta arredio ocupam setenta páginas do livro "Dossiê Drummond", republicado há pouco tempo pela Editora Globo, em edição "revista e atualizada". Bem ou mal, as declarações que o poeta quis fazer apenas duas semanas antes de morrer não se perderam no ar: ganharam vida, ficaram guardadas em bibliotecas, vão ajudar um ou outro leitor a compreender o personagem Drummond. Missão cumprida, portanto. Um dia, o "Dossiê Drummond" haverá de cumprir o destino final de tantos e tantos livros: escondido lá no fundo de uma prateleira de um sebo empoeirado, cairá nas mãos de um leitor anônimo. Como se fosse um escanfandrista em busca de ostras perdidas no fundo do oceano, o leitor curioso desembolsará um punhado de reais por aquele feixe de lembranças impressas. O destino do livro terá se cumprido, na íntegra).
Paro por aqui. Ouço o ruído inconfundível das patas de uma fera roçando na porta dos fundos: é o Cão da Subliteratura querendo entrar. Já o conheço de outros carnavais, é claro. Bato em retirada antes que ele se instale na sala.
Mas deixo uma promessa por escrito.
Prometidíssimo: cedo ou tarde, vou reunir em livro as gravações que fiz com Joel. Podem ser úteis à troupe minoritária dos que se interessam de verdade por jornalismo. Joel foi pioneiro no uso de técnicas literárias no texto jornalístico.
Já tínhamos até escolhido um título: "Diálogos com o Último Dinossauro".
Há um ano, a gente falava da visita indesejada que bateu à porta do apartamento de Joel Silveira:
A VIDA IMITA O POEMA NA MORTE DE JOEL SILVEIRA: O AGENTE FUNERÁRIO CHEGOU NA HORA. E A PLACA DO CARRO ERA LFR 1236
Faz pouco tempo, descobri um belo poema de Lawrence Ferlinghetti. O poeta diz, com outras palavras, que o mundo é um belo lugar, mas um dia, cedo ou tarde, ele virá : o agente funerário sorridente.
E o agente veio. Acabo de sair da casa de Joel Silveira. Não quis ver a saída do corpo. A Santa Casa de Misericórdia avisou que o agente chegaria às duas horas. Pensei comigo: "Com a pontualidade brasileira, ele vai chegar lá para as quatro da tarde". Engano. Nem uma hora e cinquenta e nove minutos nem duas horas e um : eram duas em ponto quando o agente apertou a campainha, no apartamento de Joel Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana. O agente encenava, sem suspeitar, o poema de Lawrence Ferlinghetti. Era como se dissesse: tudo pode atrasar no Brasil, mas a morte, quando vem, chega exatamente na hora, sem tolerância. Nem um segundo de atraso.
Desci do sexto andar. Lá embaixo, tive o gesto inútil de observar a placa da Kombi branca da Santa Casa de Misericórdia: LFR 1236. A Kombi trazia, nas laterais, o nome da Santa Casa e o telefone: 0800 257 007.
Joel tinha inveja de um personagem de Vitor Hugo que, minutos antes de ser guilhotinado, dizia, resignado, que estava pronto para a execução,mas "gostaria de ver o resto". Ou seja: o personagem gostaria de descrever a própria morte. Que palavras Joel usaria ?
Quanto a nós, discípulos e aprendizes, já não há o que fazer, além de anotar a placa da Kombi : LFR 1236, três letras e quatro números amargamente inúteis.