O site www.geneton.com.br traz a íntegra do depoimento de Friaça ao repórter Geneton Moraes Neto:
O DEPOIMENTO COMPLETO DO ÚNICO BRASILEIRO QUE REALIZOU O SONHO DE MARCAR UM GOL NUMA FINAL DE COPA DO MUNDO NO MARACANÃ. A INCRÍVEL HISTÓRIA DO ARTILHEIRO QUE TEVE UMA CRISE DE AMNÉSIA DEPOIS DE PERDER UM TÍTULO QUE PARECIA CERTO. QUANDO ELE "VOLTO A SI", ESTAVA EMBAIXO DE UMA ÁRVORE, NUMA CIDADE DO INTERIOR"
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Friaça podia bater no peito: era o único brasileiro que realizou o sonho de todo jogador de futebol: marcar um gol pelo Brasil, numa final de Copa do Mundo, no Maracanã.
O autor da façanha morreu hoje, doze de janeiro de 2009, aos 84 anos.
Tive a chance de entrevistá-lo duas vezes.
Eis o que ouvi do jogador que entrou para a história do futebol graças a um gol inesquecível.
O depoimento completo de Friaça foi publicado no nosso livro "DOSSIÊ 50', lançado em 2000 pela Editora Objetiva. É a única reportagem que traz a palavra de todos os jogadores que entraram em campo para enfrentar o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950. Esgotado, o livro virou "raridade". Mas pode ser encontrado em sebos.
Aqui, o capítulo dedicado a Friaça:
“FIZ UM A ZERO NA FINAL DA COPA.ALI NÓS JÁ ÉRAMOS DEUSES”
Albino Friaça Cardoso tinha vinte e cinco anos, oito meses e vinte e seis dias quando realizou o sonho máximo de todos os jogadores brasileiros de todas as épocas: fazer um gol numa final de Copa do Mundo dentro do Maracanã superlotado. O gol sai logo no primeiro minuto do segundo tempo. O Maracanã enlouquece. Friaça também. “A emoção foi tão grande que só me lembro de uma pessoa que veio me abraçar: César de Alencar, o locutor. Quando a bola estava lá dentro, ele gritou: “Friaça, você fez o gol!”. Naquela confusão, ele entrou em campo e me abraçou. Nós dois caímos dentro da grande área”. Louco de alegria, Friaça só se lembra com clareza do rosto de César de Alencar. “Passei uns trinta minutos fora de mim. Eu não acreditava que tinha feito o gol. Eu tinha potencial, mas estava ao lado de craques como Zizinho, Ademir e Jair. E logo eu é que fiz o gol”. Se o Brasil precisava apenas de um empate, então o jogo estava liquidado: a seleção ia ser campeã do mundo. “Ali, nós já éramos deuses”.
Friaça só não poderia imaginar que outras cenas inacreditáveis iriam acontecer ali – além da queda com César de Alencar dentro da grande área, numa explosão de alegria. Consumada a tragédia brasileira, diante da maior platéia até hoje reunida para um jogo de futebol, a dor da derrota desnorteou o autor do gol do Brasil.
“O trauma foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder com um gol daqueles ?”.
Depois das voltas inúteis em torno do campo do Vasco na noite de domingo, Friaça pirou. “Só me lembro de que a gente subiu para o dormitório. Eram umas onze da noite. Troquei de roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis, no meu carro. Passei pela barreira, fui para um hotel. Quando me perguntaram: “Friaça, o que é que você quer?” Eu simplesmente não sabia onde estava. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira, no terreno do hotel. Não sei como é que saí com meu carro da concentração. Não sei como é que fui bater em Teresópolis. Um médico que era prefeito de Teresópolis é que me deu uma injeção. Comecei a saber onde é que estava uns dois dias depois. A a minha família,em Porciúncula,estava atrás de mim, sem saber onde é que eu estava. O pior é que eu também não sabia. De 64 quilos eu passei para 59”.
Quem tivesse a sorte de fazer gol pelo Brasil ganharia um terreno – era um dos prêmios aos futuros campeões do mundo. O artilheiro da finalíssima contra o Uruguai mereceria um prêmio extra – uma televisão, na época, um luxo para privilegiados. Quando finalmente descobriu em que país estava, depois do trauma da vitória do Uruguai, Friaça tentou receber o terreno e a televisão.
“A resposta que me deram foi: só se o Brasil tivesse vencido o jogo...”.
“Eu tinha confiança : a gente ganharia do Uruguai com facilidade.Cheguei a imaginar um placar de 2 ou 3 a 0 para o Brasil,pelo time que nós tínhamos e pelo time que o Uruguai tinha.A gente pode dizer que o Uruguai tinha um grande time,mas o Brasil era uma potência,uma força.O Brasil não pensava nem no empate.A gente não daria essa chance ao Uruguai.A verdade é que nós,os jogadores,estávamos tranquilos.A gente sabia que,se o time jogasse o que vinha jogando,dificilmente perderia.Se o tempo pudesse voltar,se o Brasil pudesse jogar dez vezes contra o Uruguai,ganharia nove.A seleção de cinquenta foi uma das maiores que o Brasil já teve.
A maior vingança que experimentei em minha carreira esportiva aconteceu um ano depois de nossa derrota na final da Copa de 50.O Vasco da Gama foi ao Uruguai jogar contra o Penarol. Ganhamos do Penarol – que tinha onze jogadores de seleção – dentro do Estádio Centenário.Repetimos a dose em outro jogo,aqui no Brasil.
Em 1950,nós estávamos engatinhando. Não estávamos preparados para ter um impacto tão grande quanto o que sofremos.O nosso time tinha um potencial muito maior do que o do time do Uruguai. O gol de empate do Uruguai,marcado por Schiaffino,teve um impacto grande sobre nosso time.Porque,até então,o jogo mais duro que tivemos tinha sido contra a Iugoslávia.Vencemos por 2 a 1,um jogo duro.
Diante dos outros,o Brasil jogava quase que a toque de música,como,depois,a seleção de 70.Era um time homogêneo.Quando o Uruguai fêz o gol de empate,sentimos um impacto.Há quem fale em Bigode.Mas fomos todos nós.
Não houve falha na armação tática do time.Ainda ouço até hoje que Obdulio Varela deu um tapa em Bigode. Não deu.Eu estava lá ! Pude sentir todo o problema.Bigode –é verdade- tinha dado uma entrada violenta.Aliás,violenta,não : uma entrada dura.Houve o impacto do juiz.Neste momento,Obdulio entrou em cena para separar. Mas não houve nada.
O que aconteceu,no gol,adiante,é que Bigode foi batido numa jogada,porque Ghiggia era um jogador de alta velocidade. Se Bigode foi batido pela alta velocidade de Ghiggia,então teria de contar com a cobertura de outro jogador. Não posso ficar falando.Não é o caso de a gente crucificar A, B ou C.Mas não houve cobertura.Como não houve cobertura,veio aquele impacto. Schiaffino,no lance do primeiro gol do Uruguai,foi muito feliz,como Ghiggia.Basta ver que o próprio Ghiggia diz que pegou a bola mal no pé.Fêz o gol no contra-pé de Barbosa,o nosso goleiro.Pegou a bola quase que com o bico da chuteira.Resultado : a bola entrou entre a trave e a perna esquerda de Barbosa.
O que eu acho é que não houve uma cobertura certa no lance, já que se sabia que Ghiggia era um jogador de grande velocidade. Tinha pouco domínio de bola,mas era veloz.
Não acredito em falha técnica do treinador. Porque,desde o primeiro jogo,entramos da mesma maneira.Mas aconteceu o lance : Ghiggia recebia a bola e partia para cima de Bigode.Como era de alta velocidade,Ghiggia dava um chute lá pra frente e partia.Então,a cobertura era essencial.
Não estou crucificando ninguém.Mas estou dizendo o que faria : punha um jogador fazendo a cobertura.
Gravei bem o lance do meu gol contra o Uruguai,porque este é o tipo de coisa que a gente guarda.Eu tinha potência na perna direita,graças a Deus.Quando vi,Máspoli,o goleiro do Uruguai,tinha saído.Bati forte na entrada da área - do lado direito para o lado esquerdo.A bola entrou.O lance tinha nascido de uma combinação minha com Bauer.Assim : Bauer tocou para mim, eu toquei para o Zizinho – que tocou,na frente,para mim. Antes de entrar na área,bati na bola.Tive a felicidade de marcar !
Eu só tinha um pensamento : fiz o gol ! A única coisa que eu vi foi César de Alencar me abraçando.Caímos dentro da área.Passei uns trinta minutos fora de mim.Eu não acreditava: nós tínhamos craques como Zizinho,Ademir e Jair.Mas eu é que tinha feito o gol ! Em toda a vida,eu sempre fui muito frio, nunca tive medo de ninguém : eu era igual a todos. É uma das das vantagens que eu tinha -e tenho até hoje.
Quanto à recomendação que o nosso técnico fêz antes do jogo,é bom que se diga o seguinte : o que Flávio Costa não admitia a covardia,mas aceitava entradas firmes e duras,desde que fossem leais.Há uma diferença entre as duas coisas.Deslealdade é uma coisa,jogada dura é outra.
Se alguém pensou em tirar de campo um jogador como Obdulio Varela,foi bobagem.Porque Obdulio era um jogador vivo e manhoso : não ia cair numa dessas.Eu mesmo já passei por uma situação dessas. Gostava de jogo duro.Não cheguei a jogar quatro vezes no Vasco na mesma posição : ora era center-foward,ora ponta-esquerda,ora ponta-direita.ter four, ponta esquerda, ponta direita e gostava. Depois da Copa,joguei contra o Uruguai,como center-foward.Matias Gonzalez me disse : “Vou te botar pra fora da área !”.Eu disse : “Você me conhece ! Sou do estado do Rio ! Já joguei 4 vezes contra você.Vamos brigar até o fim do jogo.Você sabe que eu não corro do pau !”.
Antes do jogo,aquele assédio atrapalhou o descanso dos jogadores.Como era ano de eleiçãO,teve jogador que foi levado para passear.A seleção,então,não teve sossego,tranqüilidade.É por razões que eu digo que a seleção estava engatinhando,em 1950,porque não tinha uma vivência.Um exemplo: passamos quarenta e cinco dias em Araxá,sem comunicação alguma com nossas famílias. Depois que Paulo Machado de Carvalho e o falecido Geraldo José de Almeida foram para é que começamos a Ter contato.Acontecia o seguinte : nossas famílias não recebiam as cartas que a gente escrevia.
Não culpo Flávio Costa de jeito nenhum, porque ele era sozinho.Era Flávio Costa e Vicente Feola para tomar conta de vinte e cinco jogadores. Depois,ficaram vinte e dois.Hoje,existe uma comissão técnica.Mas quem fazia treinamento era Flávio Costa – tudo ele.A equipe era o roupeiro,dois massagistas,dois médicos e Vicente Feola,para ajudar.
Eu me lembro de lances que poderiam ter mudado a história do jogo.Eu era um jogador que tinha noção dos passes,principalmente os de perna direita. Houve um lance em que fiz um passe certeiro,para Ademir entrar de cabeça.Eu,naquele estado de nervos,tinha certeza de que Ademir,com a facilidade que tinha para jogar,faria o gol.Mas Ademir praticamente devolveu a bola para mim. A bola voltou na mesma direção ! Por aí,dá para ver o estado em que os jogadores do Brasil se encontravam,naquele momento,a dez,quinze minutos do fim da partida.Naquela altura,era tudo na base do “valha-me Deus”,porque ninguém entendia nada.
A gente tinha saído da concentração para o Maracanã às onze e quarenta e cinco.Chegamos ao estádio em torno de uma hora da tarde.Quando chegamos ao vestiário,encontramos colchão para todo mundo se deitar no chão.
Antes,quando a seleção estava concentrada no Joá,antes da mudança para São Januário,várias vezes tivemos de empurrar,em dia de treino,uma camionete enguiçada da Polícia Militar,uma daquelas que tinha a madeira pintada de amarelo e a lateria pintada de azul.
Durante a Copa,jogadores receberam camisa, corte de terno,relógios e lustres.Da Sexta para o sábado e do sábado para o domingo,dentro do bar do Vasco da Gama,na concentração em São Januário,eu assinei autógrafos como “capeão do mundo”.Assinei !
Tinha até comerciante envolvido.Hoje,jogador de futebol não faz um negócio desse se não receber uma importância. Mas eu assinei bolas,faixas,fotos,todo tipo de coisa.Já nem sei onde assinei...Quem fizesse o primeiro gol receberia um terreno,perto do Leblon.Quem fizesse o primeiro gol do Brasil contra o Uruguai iria ganhar uma televisão,uma novidade,na época.Fiz o gol.Nunca vi esse prêmio.Não ganhei terreno.Corri atrás,mas não adiantou nada.Quem ia dar os prêmios disse que não podia,porque o Brasil tinha perdido a Copa.A televisão ia ser prêmio de uma loja chamada A Exposição. Meu cunhado foi à loja,para saber do prêmio.Disseram : “Ah,não ! Só se o Brasil tivesse ganhado o jogo...”.
Logo em seguida,comprei uma televisão.
Durante a Copa,houve uma reunião entre os jogadores,para discutir a divisão de prêmios que eram oferecidos à seleção.Decidiu-se que ia se fazer um leilão dos objetos.Pelo seguinte : havia no grupo jogadores que não tinham condições físicas ou técnicas de jogar.Como não jogavam,corriam o risco de não receber prêmios.Então,combinou-se com nossa “diretoria”,formada por Augusto,Nílton Santos,Castilho e Noronha,o seguinte : tudo o que cada um recebesse seria leiloado.Houve,então,uma pequena desavença sobre como é que se ia dividir um lustre de cristal,oferecido por uma loja.Flávio Costa entrou na discussão para acalmar o pessoal.
Mas o pior,para mim,veio quando o jogo acabou.Vim para o Vasco. Ficamos eu,Bauer, Rui e o Noronha andando em volta do campo,na pista do do Vasco. : é a momento mais duro que tive em minha vida.Dali,subimos para o dormitório. O assunto era um só : como é que nós fomos perder com um gol daqueles ? Ficou aquela “conversa de bêbado”,sem fim nem começo.
Só sei que subi para o dormitório ás onze horas.Não me lembro de mais nada,não sei de mais nada. Quando eu dei por mim,estava em Teresópolis ! Uma pessoa do hotel me perguntava: “Friaça, o que é que você quer?” E eu nem sabia onde estava !.Só sei que estava debaixo de uma jaqueira,num hotel...Fui sozinho para lá.Não como é que pedi ao porteiro para sair,não sei como é que cheguei a Teresópolis.De manhã,o porteiro do hotel foi chamar o prefeito de Teresópolis – que eu conhecia.Tomei injeção,passei uns dois dias com ele. Honestamente,não sei o que eu tomei,mas fiquei apagado. Depois é que me refiz,comecei a saber onde é que eu estava e o que é que tinha feito.A minha família estava me procurando no Rio e em São Paulo,porque não sabia onde é que eu estava.Mas eu mesmo também não sabia ! Depois de chegar finalmente a Porciúncula,terra da minha família,eu me comuniquei com o Rio e com São Paulo.Eu tinha 64 quilos.Passei para 59.
Devo ter ido para Teresópolis porque sempre que tinha uma folga gostava de ficar quieto lá.Nunca gostei de confusão.Eu queria era tranquilidade.
O que vi no vestiário do Brasil,assim que acabou o jogo,foi só choro.Não se via outra coisa,a não ser gente se abraçando,chorando,lamentando.Os mais frios sofrem mais.Quem desabafa sente um alívio.quem não desabafa fica sofrendo.Nosso vestiário - desculpe a expressão – virou um cemitério.Era só gente se lastimando,como num velório.
Quando acabou tudo,eu pedia muito a Deus que eu jogasse outra vez contra o Uruguai.Terminei jogando – e ganhando,pelo Vasco : 3 a 1 em Montevidéu,2 a 0 aqui.
Não adiantava querer sonhar.Eu queria ir à forra.O Vasco chegou debaixo de cavalaria,mas ganhou.
Jogadores da seleção brasileira de 50 - que tinham condições de crescer na carreira - só regrediram depois da Copa.Antes,éramos deuses.
Nós,os jogadores,sofremos em todos os cantos,porque para onde a gente ia,ouvia só duas palavras : Obdulio,Uruguai "