Aos fatos: o editor Alberto Schprejer me procurou no ano passado porque queria fazer um convite. Que tal escrever um livro-reportagem sobre um caso que sempre foi tabu na história do Partido Comunista Brasileiro - o "justiçamento" de uma menina de dezesseis anos de idade chamada Elza, no já remotíssimo ano de 1936 ? Suspeita de traição, ela foi executada num rito sumário, por ordens da direção do Partido. Método: estrangulamento.
Não é um tema fácil, porque pode se prestar a todo tipo de manipulação ideológica. Elza é, literalmente, um esqueleto no armário da esquerda brasileira.
Diante do convite, o meu detector de matérias emitiu, na hora, um ruído característico que, discretamente, invade os meus tímpanos em situações semelhantes : um clique inconfundível, exatamente igual ao disparado por aqueles equipamentos que os técnicos usam para detectar sinais de radiação. Habemus matéria!
A pauta renderia, claro, uma bela reportagem, estritamente factual, sem qualquer contaminação ideológica.
(Sou repórter, não sou militante. Como personagem jornalístico, George Walker Bush me interessa tanto quanto - por exemplo - Vladimir Ílitch Uliánov, o popular Lênin. Eu daria tudo pela chance de entrevistar um ou outro, desde que Lênin fosse capaz de se levantar do velório que já dura oitenta e tantos anos no mausoléu da Praça Vermelha - e George Bush tivesse a idéia luminosa de me convidar para uma rodada de gravações exclusivas no rancho onde se enclausurou, no Texas. Os dois dariam excelente matéria-prima jornalística. Quem quiser fazer militância política que se inscreva num partido. Ponto. Parágrafo).
Ocupado com outros projetos, agradeci ao editor a lembrança do meu nome como possível autor do livro-reportagem. Entre uma e outra garfada num prato modernoso que, a bem da verdade, não deixou sinais de saudade no meu paladar, indiquei, informalmente, os nomes de dois jornalistas que poderiam dar conta da tarefa: Sérgio Rodrigues e Fernando Molica.
Não estou cometendo qualquer indiscrição ao citar esta cena (banal) dos bastidores da nossa paisagem editorial.
Sérgio Rodrigues levou adiante a empreitada.
É aí que a porca torce o rabo. Porque quero fazer uma confissão: ao recusar, por absoluta falta de tempo, o convite para fazer o livro-reportagem, terminei prestando, sem saber, um grande favor à literatura brasileira.
Neste momento, uma mão se ergue lá no fundo da sala: "Desembucha! O que foi que houve? Quer contar logo o que foi que aconteceu ?".
Quero: se eu tivesse feito o livro sobre Elza, teria produzido, apenas e tão somente, uma reportagem - ou uma série de entrevistas. É a única coisa que sei fazer. Um livro estritamente jornalístico sobre a garota Elza poderia, por sinal, ficar bom. Por que não ?
Mas Sérgio Rodrigues deu um passo adiante.
Diante da escassez de material jornalístico sobre o assunto, partiu para uma empreitada ousada: resolveu escrever um livro em que intercala o estritamente factual com páginas de ficção descarada.
Fez um golaço, porque a mistura entre fato e ficção foi felicíssima. Declaro, portanto, diante deste tribunal, que prestei um grande favor à literatura brasileira : ao recusar o convite para tocar o projeto, deixei, casualmente, o caminho "livre" para que um autor inspirado entrasse em cena e produzisse, a partir da história da garota Elza, uma mistura empolgante de ficção com verdade histórica, algo que eu jamais faria, por incapacidade técnica.
Dizei-nos, Paulo Coelho: a vida pode ou não pode ser uma miríade de acasos ?
O que interessa é que o livro "ELZA, A GAROTA", recém-lançado pela Editora Nova Fronteira, é arrebatador. Sérgio Rodrigues criou dois belos e apaixonantes personagens: Molina - um jornalista de quarenta e seis anos que já se deixara envenenar por uma mistura de "tédio e cansaço" - bate na porta de um apartamento de dois quartos, no bairro do Flamengo, à procura de um tal de Xerxes, um nonagenário que publicara um anúncio esquisito nas páginas de classificados de um jornal. Queria alguém que pudesse ajudá-lo a escrever suas memórias.
Um trecho:
"A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que o velho falava como se escrevesse, vírgulas e tudo. Tamanho poder de articulação era coisa de um outro tempo, e foi só então que a idade quase impossível do homem - noventa e quatro, estava no jornal - desabou na sala diante dele como um rochedo, um totem, uma pirâmide".
A partir daí, as 236 páginas passam voando.
Em uma frase: "ELZA, A GAROTA" é um dos melhores livros brasileiros lançados nos últimos tempos.
Feita esta declaração, o autor-que-foi-sem-nunca-ter-sido desliga o terminal de computador, apaga a luz, fecha a porta e, como na letra daquela música antiga de Paulinho da Viola, desaparece na "poeira das ruas", não sem antes recomendar aos navegantes : correi para as livrarias.