O cansaço deixou marcas inconfundíveis no rosto de Gabriel García Marquez: os olhos estão vermelhos, os cabelos desgrenhados clamam por um pente, a camisa branca exibe marcas de suor nas axilas. São 11 e 45 da noite.
Se pudesse escolher, ele estaria dormindo o quarto sono agora. Mas o Prêmio Nobel é homem de palavra. Cumpre a promessa feita horas antes : depois de passar a tarde inteira falando a estudantes de cinema sobre os segredos da criação literária - como se os talentos da imaginação pudessem ser transmitidos numa sala de aula - ele chega sozinho à recepção deste hotel de terceira categoria em Havana. Desaba o peso do corpo sobre uma poltrona vagabunda. Acende um charuto. Aceita com um meneio de cabeça a oferta do garçom : um copo de água mineral.
GGM acha que qualquer tempo concedido a repórteres é puro desperdício. Mas aceitara dar uma entrevista desde que o assunto não fosse literatura. Por imposição do entrevistado, o único tema permitido em nossa conversa seria o mais improvável e aparentemente mais desimportante de todos os assuntos por ventura merecedores de menção num diálogo com um prêmio Nobel de Literatura : o fascínio que as matinês de cinema exercem sobre ele até hoje.
Como todo grande escritor conquista o direito de exercitar pequenas excentricidades sem precisar dar explicações aos intrusos, GGM também determinou com antecedência o número de perguntas: somente seis. Nada além. Número cabalístico ? Jamais se saberá. Não pude perguntar. Não era este o assunto da entrevista.
Eis as descobertas de Gabriel García Marquez sobre as matinês:
1.Por que o senhor considera as matinês tão fascinantes ?
"À hora da matinê - uma palavra francesa metida a empurrões no castelhano - ,no interior dos cinemas, respira-se uma atmosfera lúgubre. Parece que os passos ressoam menos no piso atapetado, mas a verdade é que os que assistem à sessão das três procuram, inconscientemente, passar despercebidos. "É o sentimento de culpa da matinê", já disse alguém, definindo dessa maneira a atmosfera de mistério e clandestinidade que têm os cinemas às três da tarde"
2.O que é que diferencia, então, o frequentador de matinês dos das outras sessões ?
"Um cinema à hora da matinê se parece a um museu. Ambos têm um ar gelado, uma quietude funerária. E, entretanto, é a hora preferida dos verdadeiros cinéfilos. O verdadeiro cinéfilo vai ao cinema sempre sozinho. Senta-se invariavelmente nas laterais da sala. Não mastiga chiclete nem come qualquer tipo de guloseima. Não lê jornais nem revistas, pois permanece nas nuvens, concentrando a tela com ar de concentrada estupidez até começar a projeção"
3.Pelo que o senhor conseguiu observar no escuro, como é que este cinéfilo se comporta depois de iniciado o filme ?
"Desaperta o cinto, desamarra os cordões dos sapatos e o nó da gravata e trata de apoiar os joelhos ou pôr os pés no espaldar da poltrona dianteira. Cinco minutos depois de começada a a projeção, pode estourar uma bomba no cinema que o verdadeiro cinéfilo não se dará conta"
4.Mas não é possível que as matinês sejam povoadas somente por cinéfilos fanáticos. Quem é,então, que faz companhia a eles ?
"Vai também à matinê aquele a quem o cinema não tem a menor importância. É muito provável que a clientela das matinês diminuiria sensivelmente se os colégios secundários fossem fechados. Os estudantes que comumente vão ao cinema em grupos não têm outro interesse além de se refugiar em lugar seguro enquanto as aulas passam".
5.O fato de estudantes se refugiarem nas matinês para escapar das aulas explica o ar de estranha clandestinidade dessas sessões de cinema ?
"Como todos nós o fizemos alguma vez, é também muito provável que essa seja a origem do "sentimento de culpa" e da sensação de clandestinidade de que nós, adultos, padecemos na matinê. Devido a esse pequeno público, um cinema às três da tarde é o lugar mais seguro para um encontro escondido, para os amores secretos - por qualquer motivo - e para fugir a uma obrigação inadiável".
6.Qual foi a melhor definição que o senhor já ouviu sobre as matinês ?
" ``Quando tiver um problema sem solução, vá à matinê´´, dizia, há algum tempo, o gerente de uma importante empresa ao chefe de relações públicas : na quarta-feira da semana seguinte, eles se encontraram à saída de uma matinê".
Meia noite e meia. Gabriel García Marquez disfarça o bocejo, mas, dois minutos depois, emite um suspiro de cansaço e impaciência, como a dizer que chega, basta, já tinha dito o que queria sobre o mistério das matinês, um assunto mais importante do que todas as inúteis teorias literárias. Despede-se com um aperto de mão pouco convincente. Desaparece no penumbra de um corredor de hotel mal iluminado nesta noite de julho em Havana.
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(*) PS: Tanto os encontros com Gabriel García Marquez em Havana quanto as perguntas da entrevista são imaginários: um exercício de realismo mágico amador. Mas as divagações de GGM sobre as matinês são verdadeiras : foram extraídas do texto "Por que você vai à matinê ?", publicado no livro "Textos Andinos" (Editora Record)