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Qual é o espaço para a chamada "grande reportagem" hoje, na imprensa brasileira ? Quase nenhum. Dá para contar nos dedos da mão de um mutilado de guerra o número de casos em que os jornais e revistas investem tempo, dinheiro e talento naquilo que um dia se chamou de "reportagem de fôlego".
Generalizou-se a sensação de que o leitor não quer ler. A crença na suposta inaptidão do leitor para a leitura se espalhou como uma praga. Resultado: é tudo curto, tudo telegráfico, tudo uniformizado. Não estou aqui, óbvio, idealizando a figura do leitor, esta entidade que entra numa banca sem ser visto,passa o olho na revistas e jornais, escolhe eventualmente a pior leitura e some sem deixar vestígios. É provável que ele se satisfaça com o reino dos textos telegráficos. Mas não é possível que não exista uma faixa de leitores pronta para consumir substância, conteúdo, consistência).
Hoje, no Brasil, o espaço nobre para a grande reportagem é o livro.
As editoras já descobriram há tempos este filão. Os repórteres deveriam acender uma vela na porta de entrada das editoras, transformadas na "fronteira final " da grande reportagem.
Acaba de sair do forno uma "reportagem de fôlego" em forma de livro : o jornalista Ernesto Rodrigues entrevistou Deus e o mundo para compor uma biografia quase-não-oficial do brasileiro que durante décadas mandou e desmandou no futebol mundial: João Havelange, o ex-presidente da CBD e da Fifa. Título do livro : "Jogo Duro". Editora :Record.
Digo "quase-não-oficial" porque Havelange colaborou com a biografia. Gravou horas e horas de depoimento. Teve a chance de ler o texto antes da publicação. Implicou com algumas coisas apuradas pelo repórter. Mas o livro saiu. Havelange, autocrata, autoritário, metido a imperador, ególatra, não deve, no entanto, cometer o ridículo que Roberto Carlos cometeu. Não tentará proibir o livro.
Lá, além de uma radiografia dos bastidores do poder do futebol, o leitor conhecerá histórias mais prosaicas, como, por exemplo, um problema enfrentado pela chefia da delegação brasileira durante uma excursão que passou pela Tchecoslováquia, em 1968 :
"O problema foi explicar à imprensa a substituição de vários titulares, sem revelar que o motivo não era panturrilha, mas gonorréia. Em Portugal, escala para um amistoso em Angola, o rei da Itália no exílio, Humberto II, se apaixonou, no sentido carnal, por vários jogadores".
Uma declaração de Havelange sobre o general Médici é a síntese da ação de homens como o ex-presidente da Fifa que, numa atitude tipicamente brasileira, batem no peito para se vangloriar de terem convivido bem com todo tipo de político e presidente, seja de esquerda, direita, ditador, democrata, bandido ou benfeitor:
- "Eu não tive nada a ver com o AI-5, não tive nada a ver com a Revolução. Eu respeitei o regime que havia no país, que era a minha obrigação como cidadão. Se foi bom ou se foi ruim, eu nada pude fazer".
Ah, a doce desfaçatez dos carreiristas...
"Jogo Duro": bem apurado, bem escrito, o que não é surpresa em quem já produziu a melhor biografia de Ayrton Senna.
O Sopa de Tamanco recomenda "JOGO DURO" e assina embaixo : é o futebol tal como se joga fora do campo, no silêncio dos gabinetes, longe do barulho dos geraldinos e arquibaldos.