7 de outubro de 2007

Joãozinho de Elite

A ditadura militar acabou em 2007, no dia em que começaram a ser vendidas cópias piratas de 'Tropa de Elite'.

A ditadura e o que veio depois defecaram para segurança pública. A primeira, por desvio; o que veio depois, por se aproveitar do clima de com-tantos-problemas-pega-mal-investir-na-polícia e se omitir ou faturar no vácuo.

Quantos livros existem mesmo sobre a história do policiamento no Brasil?

Outro mérito contextual é o filme não tratar da poesia do pobre ou da angústia trágica ou cômica ou tragicômica da classe média.

Ele trata de um ramo do poder. Filmes brasileiros só enfrentam o tema poder na base do deboche. Quantos filmes brasileiros tratam do poder mesmo?

Uma coisa é ver o mundo do outro com os próprios olhos. Outra é ver o mundo do outro com os olhos do outro. 'Tropa' faz isto.

Quem reclama da truculência impune dos policiais do filme é aquele que quer o malfeitor punido quando a mamã, o papá ou a babá fecham o livro na iminência da vitória do soninho.

Quem urra de excitação diante do filme pensa que ele copia Rambo e que ser do Bope, de modo hollywoodiano, é sexy. É gente ao melhor estilo joãozinho, esperando, também, a vitória do soninho. Não conta no grande esquema das coisas.

O filme mostra uma cultura de orgulho policial criada no vácuo da ditadura. Inexiste polícia antiga sem orgulho. A nossa é antiga e não tem orgulho.

Logo, de modo perverso, ele faz pela polícia o que a tv e o cinema americanos fazem. A mídia americana tempera o orgulho da história do policiamento deles e do investimento que eventualmente a sociedade faz na sua preparação, no seu aprimoramento, no seu valor, enfim.


Quanto ganha mesmo a viúva do soldado morto em operação? Qual é mesmo o orçamento e a capacidade humana da corregedoria?

De modo brasileiro, temos algum orgulho na polícia paulista, por ter participado de revolução, e no Bope.

O orgulho gerado no Bope é uma distorção natural derivada da avacalhação geral das coisas nossas.

Somos sociedade que ou é hipócrita de maneira orwelliana - policiais e pobres que se matem uns aos outros, a gente tá fora - ou que não escolhe bons políticos; escolhemos políticos que não tratam de segurança pública, da qual não entendem mesmo; políticos que têm de gerir policiais jogados na fogueira armada por colegas que fornecem direta ou indiretamente armas pesadas aos traficantes; políticos que dão diploma de matador a facínoras uniformizados; a lista de mazelas é grande neste campo, nem vale a pena entrar nos temas outros que fazem um país ser definido como tal, ao menos para fins de segurança.

TdE é sensacional mesmo tendo personagens não exatamente complexos. Na verdade, são ralos.

Pode-se até dizer que não é crível, no enredo, a motivação dos dois aspirantes quando vão salvar o colega corrupto.

De todo modo o filme é um documentário da escrotidão da qual todo mundo faz parte.

As cenas de ação têm qualidade de direção.

O uso de atores desconhecidos, tirando o chefe, é perfeito: ajuda a dar distanciamento que o emprego de canastrões de bilheteria sempre arruina.

Mas gosto mesmo é do rame-rame da oficina do batalhão e do esquema do reboque. É o cotidiano do Brasil brasileiro, nada espetacular mas pateticamente terrível.

Tenho três amigos de infância, ainda amigos, amigos para sempre, na polícia. Dois são oficiais da PM, um é civil. TdE é um filme que eles vêem há 20 anos.

Duas histórias deles.

Um dos oficiais chegou ao seu primeiro batalhão, numa cidade do estado do Rio, e ouviu dos colegas: o pessoal quer saber se o senhor tá dentro ou tá fora. Ele: dentro ou fora de quê? O interlocutor: se o senhor estiver dentro, tá tudo certo, todo mês tá ali; se estiver fora, vai criar problema, porque o pessoal é desconfiado. Mais uma coisa: aqui na região de vez em quando tem preso foragido. A gente pega e mata. Mas antes de matar a gente traz pro senhor. Ele: pra quê? Pro preso pedir pela vida dele. Então eu posso mandar não matar?, concluiu meu chapa. Não pode. Ele: então por que vocês trazem o preso aqui? Pro senhor ser cúmplice.

O civil, certa feita, tomou um tiro durante uma incursão. Foi salvo pelo colete que vestia. Colete dele. Dado pela tia que morava nos Estados Unidos.