Nos momentos em que, saindo de seu natural, um espírito superior é obrigado a deparar com a canalha humana e ouvir suas singelas parvoíces — por exemplo, em filas de cinema —, razões fisiológicas ou psíquicas de momento podem determinar três reações, basicamente: enfado, compaixão ou asco.
Quando, porém, a alma refinada caça um pascácio em púlpito iluminado, a relinchar como potro recém-amansado, já de óculos e diploma da USP sob um dos cascos, evento inteiramente diverso ocorre: o júbilo mais perfeito, o ápice da ventura moral — em suma, uma profunda e, como tal, gratificante experiência estética.
Gozo esplendoroso do tipo me ocorreu ao ler recentemente, naquele panfleto socialista americano, The New York Times, um artigo sobre a redescoberta e imediato reenterro de Machado de Assis, que terá lixo em película exposto em sua homenagem na maior metrópole chicana do mundo.
Apesar de escrevinhado em proto-inglês de estivador jamaicano, o artigo tem a qualidade de alinhar elogios de Harold Bloom, Susan Sontag (mulher, mas lia), Philip Roth e algumas outras figuras, maiores, menores e até ínfimas, como o pseudopoeta Allen Ginsberg, ao escritor brasileiro. Opinião consensual: trata-se de um gênio. Para alguns, o maior da América Latina, para outros comparável a Kafka etc. Enfim, o óbvio para qualquer um que não seja brasileiro.
Já um pouco enojado, meditava sobre as diferenças entre seres culturais e amebas: a Espanha envencilhou Cervantes e iniciou uma tradição literária, a Alemanha fez o mesmo com Goethe, Portugal com Camões, Inglaterra com Shakespeare. O Brasil aferrou-se a Joaquim Maria e também encetou uma tradição literária: com José de Alencar.
Pensando nisso, enfim, preparava-me para cerrar a página quando, bocejando, encontro a pérola, o velocino de ouro, a cabeça de Medusa, o parágrafo que desencadeou em mim as infindáveis sensações de arroubo descritas no primeiro parágrafo deste texto, como se estivera diante dos vitrais de Chartres, pouco antes do crepúsculo, degustando um bom Chablis:
Enthusiasts in the United States and Britain “are making Machado appear less and less like Machado,” the critic and author Antônio Gonçalves Filho argued last month at a symposium in São Paulo. “Actually, they are making the writer white, like Michael Jackson. All of a sudden, he’s become ‘universal.’ ”
Que argumentar? Há dessas estultices tão bem-acabadas, tão compactas, incisivas e poderosas, tão reveladoras do imperfeito maquinismo intelectual de quem a emitiu e do baixo estrato mental a que se filia seu autor, que nos provocam uma exultação sublime, um prolongado prazer, uma inextinguível alegria, como se tivéssemos acabado de ler um punhado de versos de Aristófanes ou Shakespeare, e nos tornam durante alguns minutos absolutamente incapazes de nos mover ou falar.
Salvei o artigo no computador e desde então o tenho relido, sempre desfrutando do mesmo regalo, com aquele sorriso de quem, ao levar o filho ao zoológico, de repente, num insight, ao olhar para a jaula dos macacos e vê-los atirando fezes nos passantes, ergue a coluna e caminha mais firme, sentindo-se feliz por, apesar de tudo, ser humano.
Quando, porém, a alma refinada caça um pascácio em púlpito iluminado, a relinchar como potro recém-amansado, já de óculos e diploma da USP sob um dos cascos, evento inteiramente diverso ocorre: o júbilo mais perfeito, o ápice da ventura moral — em suma, uma profunda e, como tal, gratificante experiência estética.
Gozo esplendoroso do tipo me ocorreu ao ler recentemente, naquele panfleto socialista americano, The New York Times, um artigo sobre a redescoberta e imediato reenterro de Machado de Assis, que terá lixo em película exposto em sua homenagem na maior metrópole chicana do mundo.
Apesar de escrevinhado em proto-inglês de estivador jamaicano, o artigo tem a qualidade de alinhar elogios de Harold Bloom, Susan Sontag (mulher, mas lia), Philip Roth e algumas outras figuras, maiores, menores e até ínfimas, como o pseudopoeta Allen Ginsberg, ao escritor brasileiro. Opinião consensual: trata-se de um gênio. Para alguns, o maior da América Latina, para outros comparável a Kafka etc. Enfim, o óbvio para qualquer um que não seja brasileiro.
Já um pouco enojado, meditava sobre as diferenças entre seres culturais e amebas: a Espanha envencilhou Cervantes e iniciou uma tradição literária, a Alemanha fez o mesmo com Goethe, Portugal com Camões, Inglaterra com Shakespeare. O Brasil aferrou-se a Joaquim Maria e também encetou uma tradição literária: com José de Alencar.
Pensando nisso, enfim, preparava-me para cerrar a página quando, bocejando, encontro a pérola, o velocino de ouro, a cabeça de Medusa, o parágrafo que desencadeou em mim as infindáveis sensações de arroubo descritas no primeiro parágrafo deste texto, como se estivera diante dos vitrais de Chartres, pouco antes do crepúsculo, degustando um bom Chablis:
Enthusiasts in the United States and Britain “are making Machado appear less and less like Machado,” the critic and author Antônio Gonçalves Filho argued last month at a symposium in São Paulo. “Actually, they are making the writer white, like Michael Jackson. All of a sudden, he’s become ‘universal.’ ”
Que argumentar? Há dessas estultices tão bem-acabadas, tão compactas, incisivas e poderosas, tão reveladoras do imperfeito maquinismo intelectual de quem a emitiu e do baixo estrato mental a que se filia seu autor, que nos provocam uma exultação sublime, um prolongado prazer, uma inextinguível alegria, como se tivéssemos acabado de ler um punhado de versos de Aristófanes ou Shakespeare, e nos tornam durante alguns minutos absolutamente incapazes de nos mover ou falar.
Salvei o artigo no computador e desde então o tenho relido, sempre desfrutando do mesmo regalo, com aquele sorriso de quem, ao levar o filho ao zoológico, de repente, num insight, ao olhar para a jaula dos macacos e vê-los atirando fezes nos passantes, ergue a coluna e caminha mais firme, sentindo-se feliz por, apesar de tudo, ser humano.