O Sopa de Tamanco faz uma pequena pausa na Campanha Contra a Jumentalidade para publicar o relato do tamanqueiro Marconi Leal sobre a saga que vem enfrentando desde que virou alvo preferencial de mosquitos enlouquecidos em São Paulo ( outras marconiadas podem ser acessadas no site http://www.marconileal.com/ ):
Aqui em Santa Cecília a natureza é fértil e abundante: acordamos com o trinar bucólico dos ônibus, vamos dormir com o melodioso piar da banda Kalypso no bar da esquina e ao cair da tarde temos epifanias escutando o afável gorjear dos vendedores de ovo e laranja.
Não raro, um carro equipado com Car System se perde do bando e nos embala com seu doce chilrar, característico das aves canoras, que se prolonga infinitamente até que a gravação fique rouca ou comesse a tossir.
De madrugada, somos despertados pelo suave farfalhar dos travestis e seu coro harmônico, insultando os clientes em lúdicos concertos de palavrões. No horário do almoço, a fagueira horda de passantes invariavelmente solta seus guinchos graciosos, repletando nosso espírito ao som de: “Assalto! Pega! Ladrão!”
Também temos nossos quadrúpedes, como o dono da oficina aqui do lado e seu salutar costume de testar motores à meia-noite. Além de nosso vizinho de cima, que pelos agradáveis barulhos que produz deduzimos trabalhar com adestramento de elefantes.
Logo se vê, portanto, que sou pessoa acostumada a conviver com animais, tendo inclusive o hábito de visitar meu cunhado nos finais de semana. Contudo, talvez por ter nascido pouco depois do paleolítico, desconhecia as dificuldades de socialização com criaturas pré-históricas, caso dos pernilongos de nosso bairro.
Comecei a achar que os pernilongos de Santa Cecília não eram mosquitos como quaisquer outros quando, certo dia, passei repelente para me proteger e um deles morreu. De rir. Com o hábito, descobri que os bichinhos não só comem o produto, como dão preferência aos da Johnson.
Para terem uma idéia da gravidade do problema, digo tão-somente que toda vez que essas afáveis criaturas aparecem por aqui, escuta-se a trilha sonora dos Gremlins. Quando fazem vôos de reconhecimento, trauteiam a Cavalgada das Valquírias. E outro dia pequei uma lendo o meu Petrônio.
Já tentei de tudo para mantê-las afastadas. Dentre outras coisas, distribuí dezenas de incensos pela casa, mas fui vítima de um terrível efeito colateral — comecei a cantar Hare Hare, Hare Krishna — e parei. Procurei usar então aqueles aparelhinhos com pastilhas e descobri que 35 enfiados em todas as tomadas e benjamins nossos, mais dois ou três do vizinho, resolviam. Porém, desenvolvi intensa alergia às contas de luz. Como último recurso, coloquei o disco natalino da Simone. Elas gostaram.
De maneira que desde que o verão começou venho distribuindo meu tempo entre coçar a pele, ver bolhas vermelhas crescerem e ler e reler o Gênesis, xingando de trás para frente, na versão católica e na luterana, toda a genealogia de Noé.
Especialmente ontem, tenho certeza de que os insetos vieram aqui para casa depois de fumar maconha, porque estavam obviamente de larica. Notei que haviam ultrapassado todos os limites ao ver um deles com turbante e camisa do Bin Laden, e resolvi ligar para a portaria:
— Antonio, você por acaso não teria aí um revólver?
— Vixe Maria, seu Marcônio, tá brigando com o pessoal da igreja de novo? — perguntou o porteiro, um rapaz muito prestativo, recém-chegado de Marte e, ao que parece, sofrendo ainda com o jet lag.
— Revólver, eu disse, não bazuca. É pros mosquitos. Tem ou não tem? Fala logo que desde Antonio até bazuca já engoli dois.
— Muriçoca? Ah, seu Marcônio, mas isso de muriçoca é só a gente não dar atenção.
Eis aí, gente esnobe, quanto vale a ciência popular. Graças às palavras desse ente evoluído, venho me dedicando à grata tarefa de fingir que não vejo os mosquitos ou de desviar o assunto para política quando me mordem: “Bem, como dizia Hobbes, o homem é o mosquito do homem” etc.
E desde que passei a empregar o artifício, a situação melhorou bastante. As picadas continuam as mesmas, é verdade, mas já consegui que os bichinhos, em crise de consciência, devolvessem minha mulher e a geladeira.