27 de agosto de 2007

De "Santiago" e outros mordomos

João Moreira Sales (é com um "l" só ou são dois "ll", à semelhança de Collor. Nunca sei) é um rapaz educado, um gentleman, culto e um bom documentarista. É também um sujeito bastante generoso. Deu até uma grana para um traficante carioca, gente da pior qualidade, pela qual foi condenado. Para recortar em outro contexto, um verso de Joaquim Cardozo, grande poeta pernambucano, talvez explique nossos sentimentos altruístas:"a beleza católica do rio". Ou, mais existencialista, "a bondade frágil" estigmatizada por Sartre. Ou, ainda, a culpa ibérica dos congregados marianos.

Considero João melhor cineasta do que Walter Moreira Salles, conhecido nas rodas cinematográficas como Walteza ou Waltinho. Walter tem uma obra bastante irregular, apesar de todo o esforço e financiamentos disponíveis. Basta lembrar um produto tipicamente Pelmex que fez sucesso: "Central do Brasil", uma pieguice sem o subcharme das velhas produções mexicanas. Já João Moreira Salles fez bons filmes, uma cinematografia mais ousada em busca de uma nova linguagem para esse gênero. Apesar disso, tem um documentário, que também fez sucesso, mas é um dos mais desonestos do cinema brasileiro: "Entreatos". O cineasta acompanhou, como se sabe, a campanha vitoriosa de Lula (do primeiro mandato). Teve acesso a todas as reuniões, inclusive algumas sigilosas, acompanhou de pertinho tudo o que acontecia em torno do então candidato Lula, com direito a carona nos jatinhos alugados ou cedidos para a turma do PT.

Em nenhum momento do documentário, a palavra "dinheiro", motor essencial de todas as campanhas com ou sem caixa dois, foi pronunciada por ninguém. Parecia aquelas antigas novelas da TV Globo, dos anos 70 e 80, onde ninguém trabalhava, todo mundo vivia no luxo e ninguém sabia de onde vinha o dinheiro para bancar a farra e a comida de qualidade na mesa dos personagens. Para não dizer que não se falou em dinheiro durante quase duas horas de documentário, registre-se que Lula se queixa do Papa João Paulo II, que, nos anos 80, teria dado uma grana alta para Walesa, enquanto, supõe-se (o filme não explicita), que teria negado uma verba para os metalúrgicos do ABC. É o único momento em que se fala do vil metal. O mensalão, revelado anos depois, se encarrega de contar a história que "Entreatos" se esqueceu de relatar : a origem do dinheiro, desse e de outros, espertamente usados.

"Santiago" deve ser um excelente filme, já incensado pela crítica, inclusive por blogs mais satíricos e iconoclastas como este. O próprio João Moreira Salles revelou que pretende fazer um outro documentário familiar, sobre a visita da mãe dele à China durante o conturbado período da Revolução Cultural, final dos anos 60. O cinema, que nasceu como um empreendimento doméstico,sem muitas pretensões comerciais, sempre retorna ao lar, doce lar, apesar das grandes imposições industriais, e talvez até por isso mesmo. As câmeras leves sempre estiveram nas mãos de amadores e diletantes. Outro exemplo, mais atual, da permanente relação indústria-casa, são as locadoras de DVD. O que são as locadoras senão cinematecas de subúrbios? Velhíssimos e novíssimos filmes à disposição do espectador, sem que ele se desloque, a não ser da poltrona à cozinha.


Como bom documentarista, João Moreira Salles faz o caminho de volta para casa. Primeiro, o mordomo. Segundo, a mãe. O ideal seria que ele chegasse, pela mesma rota, ao Unibanco, o banco da família, do qual ele é herdeiro. Um documentário sobre os fabulosos lucros do Unibanco, com taxas mirabolantes e os extorsivos juros de mercado, seria um filmaço. O espectador certamente gostaria de saber como se deu a contratação do ex-ministro Malan, hoje um alto executivo do Unibanco. Malan é o pai adotivo de Lula, autor de toda essa formulação macroeconômica que representa, na prática, muito mais riqueza para os ricos e alguma esmola para os excluídos das mordomias financistas e rentistas. Não vamos exigir de João Moreira Salles que, a exemplo do industrial de Pasolini em "Teorema", entregue o banco dele aos sem-terra e aos favelados cariocas. Mas que a história secreta dos lucros exorbitantes dos bancos brasileiros nas eras FHC e Lula daria um grande documentário, é claro que daria, um grande tema para um bom documentarista. E esse filme só João Moreira Salles tem credenciamento para fazê-lo. O título? Poderia ser qualquer um, mas que tal: "Jurei. Nem parece agiotagem". Vamos lá, João. Ninguém se perde no caminho da volta. O cinema brasileiro acredita em você.