Na semana em que editorias de esporte desperdiçam horas preciosas com uma cueca, vale a pena lembrar uma época em que o negócio dos pilotos era ganhar tempo, ainda que para isso precisassem correr riscos. Destemidos, eles tinham, no entanto, um grande medo, hoje meio sumido: o do ridículo.
Abaixo, um retrato dessa época.
Noite de sábado. À mesa de um restaurante carioca na Avenida Atlântica, com as mãos espalmadas para baixo, ele desenha no ar, com um movimento ondulado e firme, o relevo de uma região paulistana que marcou sua vida. E explica como, toda madrugada, baixava sobre essa região localizada entre duas represas uma neblina densa, muito densa. Ele então fala da pista de corrida que deu fama ao lugar. Quem o ouve viaja no tempo e no espaço: autódromo de Interlagos, final da década de 50. E presta atenção ao que ele vai começar a contar. Trata-se de saber como ele conseguia abrir caminhos tão velozes através da cerração que tapava a vista de todos os pilotos, menos a dele. Bird Clemente: eis o nome do comandante daqueles vôos noturnos e quase cegos.
Ídolo de campeões como Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet, Bird marcou época no automobilismo brasileiro. Veloz, arrojado, habilidoso, dedicado, talentoso, audaz... A crônica esportiva enfileirava adjetivos para fazer jus ao volante campeão, enquanto ele deixava atrás de si filas de carros, alguns até mais potentes do que seu DKW ou sua berlineta Interlagos. “Berlinette”, como Bird prefere chamar.
Bird Clemente prepara para 2008 um livro. É garantia de boas e bem contadas histórias, por quem as viveu e construiu. Mas nosso piloto não é só passado. Ainda ligado ao automobilismo e atento, ele acompanha, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico na Fórmula 1. Mas lamenta o fato de muitos dos pilotos dessa categoria terem se transformado em meros “operadores de instrumentos”. “Hoje, muitos se escondem atrás do equipamento”, diz. E critica a ausência de risco nos autódromos muito travados, a falta de emoção. “Ninguém vai a uma tourada para ver o toureiro enfrentar um touro sem chifre”, conclui.
De volta à beira-mar. Muitos causos, dois chopes e um espaguete à bolonhesa depois, Bird deixa o restaurante Fiorentina. Já passa da meia-noite; logo mais, ele será homenageado no Alto da Boa Vista pelos 70 anos de idade que completa em 23 de dezembro. Precisa descansar: menos de 12 horas atrás, encarou a Via Dutra em direção ao Rio. Mas o papo ainda continua, enquanto Bird caminha pelas calçadas do Leme até o carro estacionado junto à praia. Ele fala de motores e saudades, camaradagem e truques, pilotos e pistas.
Bird Clemente entra no carro, mas é de carona que ele vai até o hotel, no Posto 6. Nada de punta-taccos ou derrapagens controladas – os power slides em que era mestre. Segue na frente. E, na madrugada que avança, Copacabana parece cobrir-se de uma neblina densa, muito densa. Como naquele autódromo paulistano.
(Na foto, o volante Bird Clemente toca um Bino Mark I no autódromo de Jacarepaguá no final da década de 60.)