O Sopa de Tamanco faz a boa ação do dia: convoca os internautas para um momento de enlevo literário.
Você conhece Antônio Carlos Vilaça? Já ouviu falar de um livro chamado "O Nariz do Morto" ?
Se a resposta for "não", é hora de tirar o atraso. Antônio Carlos Vilaça, morto há dois anos, era uma figura raríssima : não é exagero dizer que ele entregou a vida à literatura e à contemplação. Não cultuava bens materiais. Converteu-se à vida religiosa, mas, diante do silêncio de Deus, voltou às lides terrenas. Vivia de favor. Numa sociedade que glorifica a mediocridade em último grau, era uma espécie de pária.
O livro "O Nariz do Morto", obra-prima, foi relançado há pouco.
Correi, incréus, à primeira livraria física ou virtual, para encomendar um exemplar.
É leitura de primeiríssima qualidade. Mas, como é hábito na Brasilândia, circula num clube fechado.
Eis uma pequena mostra do texto de Antônio Carlos Vilaça:
"Ó dias, ó noites, ó vermes, que perfurais em nós a essência nossa. Que essência ? Que vermes ? Ó países em nós soterrados, ó escombros, ó múmias, ó gigantes mutilados, terras absurdas e quietas, colinas, mausoléus ,incógnitas e nós, bichos da terra, pitorescos, à procura".
"A vida é numerosa. E então os sinos súbito anunciam em nós a morte,que virá. A morte vem.Cada dia, a morte vem".
"A fé religiosa como que me assaltou.Vi-me subjugado pelo entusiasmo. A vida de rapaz que amava as letras e sabia de cor os seus poetas preferidos,a vida simples, descuidada, solitária,tantas vezes,de um rapaz estudioso (e reto) ganhou esse frêmito novo e desconhecido, essa audácia, essa loucura, essa vibração absurda".
"Eu gostava das sublimidades.Eu queria as grandezas. Eu sonhava com alturas límpidas. Eu queria as nuvens. Muito menos, o duro chão dos homens".
"Ó paredes, dizei-me. "Eu quero a estrela da manhã !". Dizei-me o endereço dela. Ó sala capitular, ó claustros, ó antifonários com iluminuras, ó sinos brônzeos, estatuazinhas , capitéis, afrescos, casulas, pesadas estalas, pedras, faces, madeiras e ouro, tapetes, cálices, relicários , retábulos e móveis, crucifixos e virgens, falai ! Um sussuro que nos chegue. Que monólogo é este, dia e noite entretido ? Sombras, sombras, sussurai-me, segredai-me. Todo esse passado, esse peso, essa pátina, pureza, pecado".
"O homem morre para sempre. O abismo da morte não devolve ninguém. E então, lentamente, fui percebendo que só nos resta uma atitude, menos que atitude, uma postura - a tranquila dignidade de quem sabe e não se desespera".
"Ó interminável estrada, ó ruas do mundo, ó caminhos da vida, ó rio dos homens por onde incessantemnte rolamos como gloriosos destroços !".
"Ó caminhante sombrio e só ! Sempre sentiste o efêmero de tudo. Nunca pousaste, nem repousaste em nada. Nunca tiveste sossego. Fosto sempre um peregrino em perigo".
"Isto é apetecível, uma casa, com mulher e meninos, para a noite do homem. Nunca terás isto, ó incauto viajante, ó ser noturno, abandonado e trágico, nunca terás o limpo sossego dos homens. Não o terás, porque o recusas, ó louco, ó orgulhoso, ó só. Não conhecerás nunca a meiga tranquilidade dos serões sem agitação : viverás como um condenado, sem casa, entregue à nostalgia do paraíso absurdo, sem chave, sem nada. Caminharás sem fim. Nunca chegarás".