• Elite grosseira
Se eu tivesse de responder em uma frase à pergunta “qual a importância da literatura no Brasil”, eu diria: “nenhuma”. É um país de analfabetos. Durante algum tempo, trabalhei na periferia de São Paulo com o grupo de teatro Vertigem. Ali, fiz alguns ateliês e oficinas de criação literária com jovens. Foi a pior experiência da minha vida. Eu me dei conta, não só que as pessoas são analfabetas, mas que o texto não faz parte da cultura brasileira; faz parte apenas de uma cultura de classe média irrisória no país. Mas o texto - e não precisa ser necessariamente literatura - não faz parte do cotidiano das pessoas. Além disso, o Brasil tem uma elite muito grosseira, muito iletrada. Em comparação com a elite de outros países, a brasileira é especialmente ignorante, e cultiva e reproduz a ignorância para os seus filhos. Isso é muito chocante e revoltante.
Você deve ter lido na Veja da semana passada a matéria sobre o livro do sociólogo Alberto Carlos Almeida, autor do livro A cabeça do brasileiro (editora Record). Para refrescar a memória:
A parcela mais educada da população é menos preconceituosa, menos estatizante e tem valores sociais mais sólidos. Se todas as pessoas em idade escolar estivessem em sala de aula hoje, a pleno vapor, o Brasil acordaria uma nação moderna no dia 1º de janeiro de 2025 – depois de um ciclo completo de educação. Os brasileiros passariam a ter baixíssima tolerância à corrupção e esperariam menos benesses de um estado protetor. Funcionários públicos ineficientes e aproveitadores seriam uma raça em extinção. Os cidadãos lutariam mais por seu futuro, em vez de se entregar distraidamente à loteria do destino. Nesse país, as pessoas de qualquer credo ou classe social se veriam como portadoras de direitos iguais. As diferenças sexuais seriam mais respeitadas. Provavelmente pouquíssimos endossariam a frase estampada no alto da página 87 – ‘Se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio’.
Vejo que Bernardo Carvalho não faz parte da parcela mais educada da população, o que o coloca junto com os analfabetos que ele critica de forma tão dura. Eu não sei até onde a burrice pode levar o indivíduo. Por isso me assusto ao ver tais coisas. Constatar que a literatura não tem importância alguma no Brasil não torna o país analfabeto. É uma relação de causa e efeito que não existe. Saber ler e escrever não torna o sujeito intelectualmente lustrado. E o sujeito intelectualmente lustrado nem sempre dá boa coisa, não é mesmo?
Agora, jovens da periferia rejeitarem ou não se adaptarem aos “ateliês e oficinas de criação literária” ministradas pelo Benardo Carvalho não quer dizer nada, pois não? Acho oficinas literárias chatíssimas, embora não lhes negue o valor. Mas é uma pretensão descarada achar que o não-envolvimento de jovens em oficinas literárias possa tornar o país analfabeto. O país pode ser analfabeto, mas por outras razões. Acho que até que o não-envolvimento desses jovens na oficina do escritor lhes confira certo valor…
• Sem conseqüência
(…) Eu vivo num mundo de fantasia. Crio um tipo de literatura que eu acho que tem alguma importância porque preciso continuar criando, mas que, na verdade, não tem nenhuma importância, não tem nenhuma conseqüência social. E no capitalismo tem um negócio que se estabeleceu: o mercado. A arte já não funciona mais para o estado, para a religião, mas se também não funciona no mercado, ela não faz sentido. Isso é terrível. Nessa situação, eu sou nada. A minha literatura pode ser de resistência, mas é muito pequena, não tem o menor significado. É nada. O que eu faço é totalmente insignificante.
Mais um escritor que se acha o gênio incompreendido. Bernardo Carvalho quer que sua literatura tenha uma conseqüência social. Está claro: seu sonho é ser o panfletista da causa, de um partido. Ele deseja curar o mal do analfabetismo, da malária, da catapora, das dores do espírito, com sua literatura. Agora, cá para nós, literatura de resistência? Sempre que vejo esse moço falar me dá a impressão de que ele não releu seus livros. Que resistência, meu filho? Reconheço na obra dele um talento para desenvolver trama e enredo, mas seu desleixo com a escolha de palavras e formulação de frases traz a maior das dúvidas: como alguém pode se tornar um bom escritor desse jeito? Odeio concordar com o moço, mas contra fatos não há argumentos: de fato, o que ele faz é totalmente insignificante.
• Idéia política
A idéia de que a literatura não serve para nada surgiu na modernidade; e a considero muito importante. É uma idéia política. É essa idéia que vai fazer a literatura de verdade sobreviver. A literatura que serve para alguma coisa é a que o mercado quer. Se vivêssemos na Idade Média, a literatura serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura oficial. Não servir para nada é um negócio radical e muito importante; permite que se faça uma literatura de ruptura, que não obedece a demandas preexistentes; cria uma nova demanda. Não é o novo pelo novo. Não é isso. É criar um mundo que ainda não existe. Criar uma vontade nas pessoas que elas ainda não têm. Isso é genial. É uma oferta para ver se germina. É lógico que eu acho que a literatura serve para alguma coisa. Mas preciso manter esta idéia, porque é uma idéia política, de resistência: literatura não serve para nada mesmo. Mas eu vou continuar fazendo. A ilusão de que não tem função é superimportante. Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar.
Primeiro o moço brada aos céus seu desejo ardente e delirante de que a literatura deveria ter importância e conseqüência social. Logo em seguida, diz considerar muito importante a idéia de que a literatura não serve para nada, razão pela qual a literatura irá, de verdade, sobreviver. Afirmações como a de que a “literatura que serve para alguma coisa é a que o mercado quer” pode fazer a platéia jovem universitária aplaudir, mas é um sofisma mal formulado. O mercado segue um curso natural: editoras colocam à venda livros que acham que podem vender. E uma parte do catálogo é formada por aqueles livros que o editor acha importante lançar, independente se vai gerar lucro ou não. O que não dá é para ter isso como norte da empresa: publicar livros sem qualquer perspectiva de venda. Não cobro de ninguém conhecimento rudimentares de economia, embora seja muito bom tê-los. O que espero é que, não tendo a mínima noção, fique de bico calado. Se fala sem saber é por má-fé, e merece uns petelecos.
Bernardo Carvalho ainda mistura questões de mercado com a subserviência da arte a propósitos políticos e religiosos. “Se vivêssemos na Idade Média, a literatura serviria para a Igreja. Se vivêssemos num país comunista, faríamos literatura oficial”. Isso nem é má-fé; é burrice descarada.
Depois de se embananar nam explicação cheia de cambalhotas que faria Caetano Veloso corar de inveja, ele tenta se explicar: “A ilusão de que (a literatura) não tem função é superimportante. Para mim, é fundamental; me dá um alento; me deixa respirar”. Ah, bom, o moço gosta de cultiva ilusões, mas mistura a realidade da ilusão com a ilusão da realidade. Alguém, por favor, manda chamar o síndico Tim Maia.
• A importância do mercado
Para o tipo de literatura que eu faço, há cada vez menos espaço. Isso é uma coisa que já discuti com o pessoal da Companhia das Letras. Se eu começasse a publicar hoje, acho que a editora não me publicaria. Eu estou meio decepcionado.
Qual tipo de literatura o moço acha que faz, minha Santa Rita do Passa Quatro? O sol se põe em São Paulo não tem nada de transgressor, novo et caterva. É um livro meia-bomba muito do desleixado no qual parágrafos que poderiam ser bons são ceifados por palavras mal escolhidas e mal encaixadas. Duvido que houvesse essa resistência que imagina o escritor. Isso é estratégia para levantar a própria bola e posar de injustiçado, renegado, blábláblá. E meio decepcionado, convenhamos, é igual meio grávida, pois não?
• Sempre o mercado
Mas acho que o mundo da literatura sempre foi guiado pelo mercado. (…) Se um cara como Beckett surgisse hoje, não teria a menor chance. Para esses escritores ingleses com quem eu estive na Itália, que são supercaretas, supertradicionais, se você fala em Beckett, eles respondem: “gênio”. Eu pensava, é hipocrisia; esse cara não acha Beckett um gênio. Ele acha Beckett um gênio porque está no cânone, está consagrado. Se eu desse um livro do Beckett sem o nome do autor, ele iria achar uma porcaria. Aí, eu perguntava: “por que Beckett é bom?” Ele respondia: “porque escreve muito bem”. Mentira, porque não é isso que o Beckett faz. O Beckett faz um outro negócio. Mas não escreve bem, não é isso que salta aos olhos.
O mundo da literatura não foi guiado pelo mercado. É bobagem, ignorância. O mercado lançou e vendeu muita porcaria, mas também lançou e vendeu muita coisa boa. Atribuir os males do mundo ao mercado é demonizar a nós mesmos. Quem é o mercado, Pedro Bó? Não somos nós que vendemos e compramos? Ou o moço acredita que o mercado é um monstro de sete cabeças com sete cornos?
Então quer dizer que Beckett entrou para o cânone porque não escreve bem? Uau! Só um bom escritor conseguia usar histórias e palavras como Beckett fazia. Se isso não é escrever bem, meu nome é Valdemar. O curioso é Bernardo Carvalho tomar como exemplo de opinião geral e sacramentada comentários de um grupo de escritores com quem esteve na Itália. Quem são esses moços? Escrevem bem? São confiáveis? Pensam bem?
• Imperialismo anglo-saxão
Tivemos um intervalo que valorizou as vanguardas, uma arte mais inovadora, dissonante, mas agora a coisa é cada vez mais careta. É um movimento respaldado pela imprensa. Hoje, entre os jovens críticos, por exemplo, qualidades inquestionáveis na literatura são personagens bem construídos psicologicamente e uma trama bem construída realisticamente. Qualquer crítico literário jovem vai tomar isso como um juízo de valor. Quando isso deveria ser um dos modelos. O crítico deveria entender que esse aí é um modelo de literatura e que existem outros que vão contra esse modelo. Mas isso é consensual. Isso é muito terrível porque não há literatura dissonante que sobreviva num clima de consenso. Eu acho que esse consenso se dá porque há um imperialismo do mercado anglo-saxão, onde impera esse juízo de valor, e uma subserviência do resto do mundo. A trama bem construída e personagens bem construídos realisticamente são tradições da literatura anglo-saxã e muito bem-feitos no século 19 por grandes autores. Isso não quer dizer que esse modelo deva ser hegemônico e se impor ao resto do mundo. Mas é lei na imprensa, e entre as editoras.
Bernardo Carvalho toma suas crenças como verdade universal. O que percebo nos críticos que leio, sejam jovens ou experientes, é a exigência pela qualidade da obra literária, não importa se segue ou não a tradição. Escritores sempre reclamam da crítica tomando como exemplo a não-repercussão de suas obras. É desonesto e não tem qualquer valor analítico.
• Imposição
Qual mercado importa hoje no mundo? O anglo-saxão. E o que ele faz em ficção? Faz um texto bem construído, com personagens críveis e psicologicamente bem construídos. É isso que vende, é isso que o público quer. (…) Ao mesmo tempo, acho muito chato o discurso do ressentido. Parece que estou aqui falando que tenho raiva do mercado, que os meus livros não vendem, eu sou uma porcaria. Mas não é isso. É uma constatação de um negócio que é fato, é claro. Ao mesmo tempo é engraçado.
Também acho muito chato o discurso do ressentido. É o que Bernardo Carvalho demonstra ser: um chato ressentido. Passemos adiante:
• Livros verdes
O tipo de livro que vai corresponder a essa venda é o livro que bate com a demanda do público. Não é um livro que contraria a demanda, que quer criar uma demanda que não existe. Coitadinho do autor que faz um livro que é uma ruptura literária, que deseja romper com o consenso, criar uma literatura totalmente nova. Esse cara não vai ser editado. E se for, não vai ser vendido pelo livreiro que é dono de uma rede de 50 livrarias. Mercado significa fazer a literatura vender igual à cultura pop. Qual literatura vai vender como cultura pop? O mercado não sabe. É o leitor quem vai dizer. É o leitor do Paulo Coelho que diz que se deve publicar Paulo Coelho. O problema é quando os escritores começam a funcionar nessa lógica de mercado. Se a literatura gira em torno do mercado, ela sai empobrecida. A pergunta é “como dentro desse mercado, desse mundo dos grandes conglomerados, pode ser criada alguma coisa interessante”? O padrão do mercado é o lugar-comum. De vez em quando acontece de as pessoas defenderem uma arte mais estranha, mas em princípio não é esse o padrão.
Sempre defendi, me alinhando a Faulkner, que o escritor não tem que se preocupar se vai ou não vender, se o mercado quer ou não o tipo de livro que ele escreve. O escritor sente uma necessidade de escrever e escreve. Se for preciso, rouba até a mãe para exercer o seu ofício, já disse Faulkner na famosa entrevista à Paris Review. O escritor Antonio Fernando Borges já tratou muito bem o tema no artigo Publicar é preciso. Escrever, não, no finado No Mínimo (reproduzido no post abaixo). Escritor que escreve para o mercado não deve ser lido pelo leitores de bem, ponto final. O que não dá é para assumir o papel bobo de salvador de almas pela literatura. Literatura terá sempre leitores contados. Se isso é bom ou mau, pouco importa. É fato e não vai mudar. É a mesma coisa do jogador de futebol querer que todo mundo jogue. E aí vai seu vizinho te perturbar enquanto você tenta ler em paz o livro de Cesare Pavese que chegou um dia antes.
• Paranóia
Eu sou um pouco paranóico. Mas se pode ver a paranóia como a criação do sentido. Se o mundo não faz sentido - e não faz -, o paranóico é que aquele que vê sentido onde não tem. O mundo não faz sentido, a vida não tem sentido, não faz sentido eu estar vivo. A paranóia me atraía como uma matriz de sentido, uma matriz desvairada. A idéia da paranóia me atraía como ficção, como produção de ficção.
Isso explica por que o moço é assim. Passemos adiante.
• O jogo
Eu escrevo os romances que eu gostaria de ler. É importante que o leitor participe de forma ativa da leitura, que seja empurrado para dentro do texto não de maneira meramente passiva, queria deixar isso claro. Então, o jogo em meus livros é importante. Tem a função de cooptar o leitor, de fazê-lo ter uma participação ativa no livro.• Sem pensar no leitor
Se eu pensasse no leitor, eu não escreveria. Eu escrevo o livro que eu gostaria de ler. Eu não tenho talento para saber o que o leitor quer ler. Mas há autores que sabem. O Paulo Coelho, por exemplo, tem uma sintonia entre a oferta e a demanda. Há uma sintonia absoluta.
Peraí, primeiro Bernardo Carvalho diz que está se lixando para o leitor, depois que tenta cooptá-lo, depois que se pensasse no leitor, não escreveria. Caetano, de novo, coraria de inveja. Gilberto Gil idem.
• Manipulação do leitor
Os meus livros explicitam a manipulação do leitor até quase o grotesco. É muito visível. Minha obra é quase só a manipulação do leitor. É o princípio do todo romance, de toda obra romanesca - o que o romance faz é manipular o leitor e fazer com que ele participe. Agora, quando se explicita isso, como é o caso dos meus livros, dá-se ao leitor uma participação mais ativa. Você mostra que está jogando com ele. É quase um convite explícito. No romance do século 19, este convite está lá, mas é mais implícito. Nos meus livros, eles quase se reduzem à explicitação desse jogo.
E lá vem Bernardo Carvalho, novamente, deixar claro que delira pelo leitor, que tenta manipular o leitor. O gozado é a citação do romance do século 19 como uma referência do que ele faz. Mas no tópico Imperialismo anglo-saxão ele não critica justamente a “trama bem construída e personagens bem construídos realisticamente” que “são tradições da literatura anglo-saxã e muito bem-feitos no século 19 por grandes autores”.
Do que deu para entender de seu pensamento é possível afirmar: Bernardo Carvalho pensa mal e isso se reflete, de certa forma, em seus livros.