Deus, dai-me soberba para suportar o rugido das feras - mas não agora.
Porque agora, para surpresa de beócios do quilate de Nicomar Lael, cometerei um gesto de magnanimidade suprema, nada compatível com a soberba a que preciso recorrer para me proteger da idiotia alheia.
Direi a Nicomar Lael, este animal rastejante que vive prospectando páginas dos dicionários em busca de palavras e expressões em desuso que lhe concedam a aparência de sábio: oh, pulha, festejai, gritai "alvíssaras!" ao céu mudo, porque confessarei que concordo contigo num ponto - apenas num! Já, já, direi qual é o único e escasso motivo de nossa concordância.
( Mas, antes, quero te deixar ciante de que, em homenagem a teus neurônios de baixa extração, atuarei como atuam adultos diante de crianças: farei de conta que não, não conheço, sequer desconfio de teus truques. Farei de conta que não sei que, como se fosse um labrador faminto, deslizas as patas pelas páginas de velhas edições de dicionários comprados em sebo, em busca de vocábulos como "charneca", "brâmane", "trautear", "atólito", "estrídulas" , "estúrdia" "eutimia" e coisas que tais, com a única intenção de contrabandeá-los em teus textos e, assim, tentar atrair, pelo exotismo das expressões, a atenção de leitores desavisados. Debalde. Direi que consegues apenas atrair a piedade.
Obterias efeito idêntico se, no lugar da recitação de tais anacronismos, simplesmente te dedicasses a um exercício mais simples: bastaria afastar ligeiramente a arcada dentária superior da arcada dentária inferior, mobilizar as cordas vocais e produzir o som que emites com tanta graça e desenvoltura desde o dia do nascimento: au-au-au-au. Bastaria fazer o que fazes tão bem: latir!
Mas, não. Insistes em escrever).
Feita a ressalva, digo que sou forçado a concordar num ponto com o sr. Nicomar Lael (volto a indagar aos céus: de que balcão de cartório de floresta terá brotado tal nome, uma cacofonia formada por vocais e consoantes em choque ?):
é perda de tempo ficar chocado com os barbarismos ditos por gente supostamente "ilustrada" na TV.
Sempre achei que, desde que mantida sem som, a TV pode ter uma excelente utilidade: deixa o ambiente à meia-luz, o que pode ser bom para as retinas fatigadas. Mas este eletrodoméstico que fala não deve, claro, ser levado a sério, porque, com raríssimas exceções, só consegue emitir três coisas: luz, som - e parvoíces.
Assim, não é de estranhar o desfile de horrores que assaltam nossos olhos a cada vez que olhamos de soslaio para os vídeos. Lá estarão anúncios engraçadinhos paridos por publicitários que se julgam gênios; celebridades idiotas tentando nos vender produtos e serviços que vão de telefones celulares a cervejas e bancos; jornalistazinhos fazendo trocadilhos infames, como se trocadilho fosse capaz de dar nobreza a textos capenguíssimos; o lixo, o lixo, o lixo.
Tive,portanto, uma iluminação. Da próxima vez que ouvir alguém dizer "meu óculos" na TV, restarei indiferente. Farei o que deveria ter feito das outras vezes:
tirarei o som.
Assim, esta fábrica de estultices finalmente cumprirá o papel que lhe cabe,por merecimento: deixar o ambiente à meia-luz.
Poderei, então, mergulhar no sono profundo, cavalgar por toda a noite por territórios de sonho, onde não há lugar para os parvos e os beócios - e os aparelhos de TV.