23 de junho de 2007
SOPA DE TAMANCO APRESENTA: MOMENTOS DE ENLEVO LITERÁRIO. OU : LEITURAS HUMILHANTES.OU: "UMA DOR ATÔNITA DIRIGIDA CONTRA TODO O ORDENAMENTO DAS COISAS"
Já, já, todos para a biblioteca! Tratem de pegar a primeira cópia de "O Leopardo" que encontrarem pela frente. É hora de dever-de-casa! O que é que vocês estão fazendo nesta Sopa? Quem não fizer o dever não vai passear amanhã.
Pelo seguinte:
quem lê "O Leopardo", o único (!) livro que Lampedusa escreveu, perguntará ao abismo azul : dizei-nos, Nossa Senhora do Perpétuo Espanto, em algum ponto de vosso reino haverá alguém capaz de escrever tão bem?
"O Leopardo" é uma daquelas leituras humilhantes. Por um instante, o livro torna pequenos todos os outros livros.
Eis como Lampedusa descreve uma simples fonte:
...."AS ÁGUAS,SOPRADAS PELAS CONCHAS DOS TRITÕES E DAS NÁIADES, PELAS NARINAS DOS MONSTROS MARINHOS, IRROMPIAM EM ESGUICHOS FINOS, SALPICAVAM COM UM SUSSURO AGUDO A SUPERFÍCIE ESVERDINHADA DO LAGO, PROVOCAVAM RICOCHETES, BOLHAS, ESPUMA, ONDULAÇÕES, FRÊMITOS, TORVELINHOS ALEGRES ; EMANAVA DE TODA A FONTE, DA ÁGUA TÉPIDA, DAS PEDRAS COBERTAS DE MUSGO AVELUDADO, A PROMESSA DE UM PRAZER QUE JAMAIS PODERIA MUDAR-SE EM DOR ".
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E o olhar de um coelho abatido:
"....ARGUTO DEPÔS AOS PÉS DO PRÍNCIPE UM ANIMALZINHO AGONIZANTE.ERA UM COELHO : O HUMILDE CASACO COR DE BARRO CINZENTO NÃO TINHA SIDO SUFICIENTE PARA SALVÁ-LO. O FOCINHO E O PEITO HAVIAM SIDO RASGADOS POR HORRÍVEIS GOLPES. DURANTE MOMENTOS DOM FABRIZIO VIU-SE FIXADO POR GRANDES OLHOS NEGROS, INVADIDOS RAPIDAMENTE POR UM VÉU GLAUCO, QUE O OLHAVAM SEM REPROVAÇÃO; CHEIOS,PORÉM,DE UMA DOR ATÔNITA DIRIGIDA CONTRA TODO O ORDENAMENTO DAS COISAS"
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Repita-se : "uma dor atônita dirigida contra todo o ordenamento das coisas".
Em dez palavras, ao descrever o olhar de um coelho abatido, Lampedusa resumiu a condição humana.
Giuseppe Tomasi, o nome de batismo do príncipe de Lampedusa, morreu em 1957, sem ver o livro "O Leopardo" publicado.
Um conhecido o descreveu assim: "Era um senhor alto, corpulento, taciturno, com um rosto pálido, daquela palidez acinzentada dos meridionais de pele escura".
Andava de bengala. Usava chapéu. Era um gênio.
O Sopa de Tamanco vos oferece de sobremesa outros clarões de Lampedusa:
"....também ela cheia de decisões a tomar e,como ela,capaz de dar a ilusão de que interferia na torrente do destino que, muito ao contrário, corria livremente noutro vale"
"....Haviam-na batizado com o nome de morfina, este grosseiro substituto químico do estoicismo antigo, da resignação cristã"
"....Acalmou-se : os olhos do sobrinho contemplavam-no com aquele afeto irônico que a juventude concede às pessoas velhas"
Fica avisado : o último a ler "O Leopardo" é mulher do padre.