15 de agosto de 2007

JOEL SILVEIRA MORREU

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Eis uma notícia que eu não gostaria de dar : a morte do maior repórter brasileiro.

Joel Silveira morreu dormindo às oito horas da manhã desta quarta-feira, em casa, na rua Francisco Sá, em Copacabana. Nasceu em Sergipe, no dia 23 de setembro de 1918. Tinha oitenta e oito anos, portanto. Vivia no Rio desde 1937. Com a saúde debilitada, deixou instruções: não queria velório. Pediu para ser cremado o mais rápido possível.

Disse-me, por telefone, há poucos dias :"Geneton, estou morrendo. É o fim". Há dez dias, em casa, tinha disposição para conversar.

O que fica ? Um excepcional trabalho jornalístico: os textos de Joel sobre a guerra são clássicos. Páginas como a descrição do encontro com Getúlio Vargas, idem ( ver trecho abaixo).

O Joel que fica é o repórter talentosíssimo, o precursor brasileiro do chamado "novo jornalismo", a "víbora" divertida e ferina.

Joel foi mestre e amigo. A morte é, como sempre, uma piada de péssimo gosto. O Joel de nossas lembranças vai ser sempre este:

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O DINOSSAURO JOEL SILVEIRA EVOCA O POETA : "DEUS EXISTE,MAS NÃO FUNCIONA"

Eis a víbora : esparramado numa poltrona na sala deste apartamento na rua Francisco Sá,quase no limite entre Copacabana e Ipanema, Joel Silveira acompanha com um certo ar de enfado o telejornal da TV a cabo.O peso dos oitenta e três anos é visível no olhar mortiço. O aparente cansaço diante do desfile de horrores planetários e provincianos no telejornal não impede o velho repórter de soltar imprecações contra –por exemplo – o Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Quando o presidente FHC aparece no no vídeo,Joel não resiste :

- É o tipo do presidente que sabe falar mas não sabe dizer .Fala mas não diz.Nunca vi falar tanto,sobre qualquer assunto.Aparece mais na TV do que anúncio de Coca-Cola.Tenho a impressão de que todo dia,ao acordar,logo de manhã,Fernando Henrique se vira para um assessor e pergunta : “Por favor,qual é o mote de hoje ?”. O assessor diz -por exemplo- “indústria siderúrgica”.E aí ele se dana a falar sobre indústria siderúrgica o dia todo.Um dia depois,muda de mote.Assim por diante,até o fim dos tempos.

Desde o ano passado , Joel brinda os leitores da “Continente Multicultural” com as tiradas ferinas do “Diário de uma Víbora”. Não foi por acaso que Joel recebeu de Assis Chateaubriand o título de “víbora” : um de seus esportes prediletos sempre foi destilar veneno e ironia em doses industriais. Em artigo que entrou para a história do jornalismo brasileiro, pintou,com palavras elegantes e irônicas,um retrato devastador das grã-finas paulistas,na década de quarenta.

Num país em que tantos títulos são injustamente atribuídos , o rótulo inventado por Chateaubriand para definir Joel é um exemplo de justiça. Além do apelido de “víbora”,Joel carrega também um título que o acompanha há décadas – o de “maior repórter brasileiro”. Se algum entrevistador fizer menção a este título honorífico ,Joel balançará a cabeça como se estivesse contrariado com o possível exagero,mas,na hora de dormir,quando for trocar confidências com o travesseiro,terá de admitir que a homenagem não soa de forma alguma despropositada. Pouquíssimos repórteres já cultivaram, como Joel,uma paixão tão inabalável pela reportagem. Nunca quis ocupar os cargos –eventualmente bem pagos – que se ofereciam,tentadores,na retaguarda das redações. Sempre fez a opção preferencial pelo “mundo exterior” . Porque desde cedo aprendeu que a boa reportagem precisa ser caçada na rua,feito touro bravio. Faz mea culpa quando se lembra dos períodos de tempo que extraviou na retaguarda das redações,como burilador de textos escritos por outros repórteres :

- Os chefes mandavam que eu transformasse cinco laudas em dez linhas. Tinha de cumprir a ordem. Eu deveria ser preso : já fui assassino de textos alheios.


Poucos terão –como Joel - um texto que reúne com tanta maestria Jornalismo e Literatura. A nossa víbora descreveu assim a cena que viveu depois de sair do Palácio do Catete,no Rio de Janeiro,ao fim de uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas :

- "Lá para a meia-noite,entrei no Danúbio Azul,um bar que não existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgidas,desde que existem mundo e manhãs de abril".

Pergunta-se : em que jornal ou revista se lêem hoje textos dessa qualidade ? A resposta é um silêncio ensurdecedor.Joel pode exercer aqui e ali um lirismo que já rendeu páginas memoráveis,mas nunca abandonou o gosto pela maledicência.Adora falar mal de da fauna humana – aí incluídos personagens perfeitamente inofensivos,como,por exemplo,os alpinistas,os turistas e os tocadores de cavaquinho.É pura implicância.Cheio de certeza,constata :

-“O cúmulo do ridículo, beirando o grotesco,é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”....

Adiante ,pergunta,a sério : -Pode existir coisa mais idiota do que um alpinista ? Por que é que eles não pegam um avião,meu Deus do céu ? Por que não vão de helicóptero ? Pra que subir naquelas montanhas,se eles poderiam ver tudo da janela de um avião,no maior conforto ?

Provoco a víbora. Quero saber quem ele não levaria sob hipótese alguma para uma ilha deserta,se fosse condenado a passar o resto da vida isolado do mundo :

- Eu não levaria João Gilberto de forma nenhuma,com aquele violãozinho,uma coisa horrorosa. Aliás,o melhor talvez fosse deixá-lo numa ilha deserta,sem violão ! Assim,eu poderia ir embora. Não entendo o fenômeno João Gilberto : é um dos mistérios que minha inteligência não consegue alcançar. Eu até me esforço para entender tanta idolatria,porque ,como sou repórter, gosto de saber das coisas.Mas confesso que não consigo.

Joel nunca morreu de amores por um ex-colega de redação que entraria para a galeria dos brasileiros notáveis do Século Vinte : - Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues.Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação.Gosto da peça “Vestido de noiva”,mas a verdade é não nos entrosávamos. Uma vez,eu estava escrevendo alguma coisa - escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo.De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção,fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: “Patético !”. Em seguida,foi embora,em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever.Depois,disse,simplesmente : “Dramático ! ”. Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – “patético” e “dramático”.

Depois de seis décadas de jornalismo, que outros tipos a víbora Joel incluiria na galeria nacional do ridículo,além dos tocadores de cavaquinho gordos e alpinistas ?

- Eu incluiria o turista numa Galeria Internacional do Ridículo.Porque o turista é de um ridículo sem par. De bermuda, cheio de máquinas penduradas no pescoço,suando em bicas, é roubado a toda hora nos restaurantes. Ridículo é também o velho que quer parecer moço- aquele que pinta cabelo, rebola e faz uma operação plástica por mês.

Joel vai fazendo confidências nesta tarde em Copacabana. Diz,por exemplo,que ouviu uma confissão de fraqueza de um dos maiores cronistas já surgidos no Brasil,Rubem Braga - um amigo do peito que até hoje lhe dá saudade. Os dois – Joel e Braga – foram correspondentes de guerra na Europa. Joel resolveu dar de presente a Rubem Braga um exemplar de um livro clássico de Stendhal – “O Vermelho e o Negro” . Semanas depois,Braga confessa a Joel que não conseguira de forma alguma passar da página noventa e dois do livro.O motivo :

- Rubem me disse que tinha interrompido a leitura porque o livro tinha personagem demais.E ninguém ficava parado....

Joel confessa que nunca conseguiu chegar ao final de “Os Irmãos Karamazov”,a obra-prima de Dostoievski. Agnóstico,alista-se entre os que concordam sem vacilar com o que disse o poeta Murilo Mendes :

-Deus existe,mas não funciona.

Cinco da tarde. É hora de dar um descanso ao guerreiro.Depois de tanta pergunta,peço que a víbora responda a um mini-interrogatório.
São apenas cinco as dúvidas que quero tirar. É claro que ele aceita a proposta.Lá vai:

1 GMN : Quem foi a celebridade mais idiota que o senhor conheceu ?
Joel : “Deus me perdoe,mas foi o Papa Pio XII.Fui a uma audiência com ele no Vaticano.Diante do nosso grupo ,ele disse :”Brasileiros ? O português é uma bela língua. “Sabia” é do verbo saber. “Sábia” é uma mulher inteligente.”Sabiá” é um pássaro”. Que idiotice !”.

2GMN : Se fosse escrever uma autobiografia,que fato vexaminoso o senhor faria questão de esconder ?
Joel : “Uma vez,em Roma,depois da guerra,vi Ernest Hemingway tomando conhaque sozinho num bar que ele costumava freqüentar.Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá-lo.Fui ao banheiro remoendo a dúvida.Quando voltei,ele já tinha ido embora.É um dos meus grandes fracassos profissionais.O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway.Nesse caso,pelo menos o lead estaria garantido”.

3GMN : Se o senhor fosse nomeado ditador de Sergipe,qual a primeira providência que tomaria ?
Joel : “Proibir a entrada de João Gilberto no Estado. Já seria um bom começo.Não existe nada tão chato quanto a Bossa-Nova”.

4GMN : Qual a cena mais grotesca que o senhor já testemunhou ?
Joel : “Não precisa ir longe.Basta desembarcar num boteco qualquer do Rio numa noite de sábado.Repito : não existe nada mais grotesco do que um sujeito barrigudo e suado tocando cavaquinho”.

5GMN : De quem o senhor não compraria um carro usado ?

Joel : “Não quero parecer ranzinza,mas alguém pode me dizer para que servem os alpinistas ? Por que aqueles idiotas não pegam um avião para olhar as montanhas do alto,em vez de tentar a subida ridiculamente amarrados em cordas ? . Eu jamais compraria um carro de um alpinista.Não se pode confiar em seres que não têm senso de ridículo”.
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(outros diálogos com a víbora Joel Silveira aqui: http://www.geneton.com.br/archives/000104.html)